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Borgen: uma aula de política civilizada
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

Enquanto a maioria dos amigos decidiu mergulhar na trajetória da família real britânica através da série The Crown, que também aborda os diferentes governos formados pelo Parlamento do Reino Unido durante o reinado de Elizabeth II, resolvi conferir com atraso uma produção mais antiga que teve suas três temporadas disponibilizadas pela Netflix (com a encomenda de uma quarta inédita prevista para 2022). A trama é totalmente ficcional, mas se baseia no universo político de outro reino menos chamativo, mas não menos elegante: o reino da Dinamarca.

Ao contrário de The Crown, na série dinamarquesa Borgen, originalmente transmitida entre 2010 e 2013, a instituição monárquica é apenas mencionada. Sabe-se que o país tem uma rainha, mas ela não dá as caras. O que vemos efetivamente são os bastidores da vida política dinamarquesa, sob dois principais pontos de vista: o dos próprios políticos e o da imprensa. O nome da série, que significa “o castelo”, é uma referência coloquial ao Palácio de Christiansborg, que sedia todos os ramos do governo dinamarquês e é cenário constante da trama.

A série tem três grandes protagonistas: a política Birgitte Nyborg (interpretada pela atriz Sidse Babett Knudsen) e os ora repórteres/âncoras/comentaristas políticos, ora assessores de imprensa Kasper Juul (interpretado por Pilou Asbæk) e Katrine Fønsmark (interpretada por Birgitte Hjort Sørensen). Os trinta episódios mostram a vida pessoal desses personagens, que conseguem, bem como os personagens secundários, captar a atenção do espectador e são carismáticos. Assistir ao programa é um exercício bastante singular em que uma população como a nossa, tão acostumada a detestar os políticos, se pode ver afeiçoada a seus dilemas, interessada em seus problemas e capaz de experimentar empatia por eles. Fosse de outra forma e não publicaria esta recomendação.

O foco, porém, está no raio X do que é a atividade política na Dinamarca. Sob esse aspecto, Borgen parece ter tanto a nos ensinar quanto o país em que se fundamenta. Em primeiro lugar, do ponto de vista do sistema representativo e partidário dinamarquês. Os partidos expostos na série exibem nomes fictícios, mas são geralmente inspirados em siglas reais da política daquele país. O primeiro detalhe que salta aos olhos é que, apesar de precisarem promover negociações e se submeter às regras da realpolitik para conquistar maiorias no Parlamento, os políticos e partidos, em sua maioria, realmente representam segmentos distintos de opinião na sociedade.

Na primeira temporada, a protagonista Birgitte Nyborg, líder do chamado Partido Moderado, se torna primeira-ministra inesperadamente e acompanhamos o desenvolvimento de seu governo. A segunda temporada segue a mesma toada, com um aprofundamento dos dramas pessoais, e a terceira já encontra Birgitte fora da política, decidindo retornar e fundar um novo partido, a Nova Democracia, por entender que sua legenda original se havia desviado de seus princípios. Vemo-la no desempenho de diversas funções e em distintos momentos de sua trajetória, o que permite encarar a rotina política dinamarquesa a partir de ângulos bastante variados.

Um detalhe importante é que Birgitte é nitidamente uma líder de centro-esquerda. O Partido Moderado se apresenta como um partido de centro, com ideias que vão de uma social democracia moderada, algo como a Terceira Via, até o social-liberalismo. Vemos Birgitte defendendo desde políticas de welfare state mais robustas – apesar de ela ser crítica de um modelo socialista tradicional –, com incremento de regulações do mercado, até demonstrando uma sutil tolerância ao aborto. Todas são bandeiras de que discordo – e particularmente a última me é intolerável. No entanto, a série nos emancipa das considerações unicamente ideológicas e políticas e nos mostra a humanidade da parlamentar, seus problemas pessoais; convida-nos a considerar como pessoas falíveis e de carne e osso aquelas de quem discordamos e a quem enfrentamos no debate público.

Além do Partido Moderado da protagonista, vemos na série um partido ambientalista (o Partido Verde), um partido liberal conservador (chamado de Partido Liberal), um partido defensor de um conservadorismo menos economicamente liberal (a Nova Direita), um partido que faria parte daquilo que se criou o costume de chamar de direita eurocética populista (o Partido da Liberdade, do cômico líder Svend Åge Saltum), um partido social democrata e trabalhista (o Partido Trabalhista) e um partido socialista mais radical (o Sindicato Solidariedade), todos com seus respectivos líderes e personagens de destaque. O detalhe brilhante do roteiro é que, apesar de vermos os acontecimentos pela perspectiva de Birgitte e dos dois jornalistas, os adversários políticos não são vilanizados e quase todos têm expostas as suas motivações e seus dramas humanos.

De fato, o personagem que mais se comporta como um vilão clássico, magoado por perder espaço politicamente para Birgitte, é o ex-líder do Partido Trabalhista, Michael Laugesen (interpretado por Peter Mygind). Ou seja, o personagem mais vilanesco é um político da própria esquerda, com a qual Birgitte compõe a maior parte da base de seu governo. O líder do Partido Liberal, representante da direita, Lars Hesselboe (interpretado por Søren Spanning), que alternou o papel de primeiro-ministro ao longo da série com Birgitte, não é de modo algum retratado como alguma espécie de demônio ou crápula. Ele é, simples assim, o líder de uma corrente de opinião distinta (e, não preciso nem dizer, se fosse eleitor na Dinamarca de Borgen, preferiria a sua plataforma política à de Birgitte).

A relação entre os líderes dos diferentes partidos é cuidadosa, institucional; todos são um pouco maquiavélicos em alguns momentos, manobrando com as possibilidades e as expectativas alheias, adotando táticas de persuasão e negociação que não exatamente esbanjam inocência. Todos estão jogando um jogo pesado, como de fato é o jogo da política. Entretanto, em diversos momentos, fica claro que respeitam os papeis uns dos outros no sistema democrático-representativo e têm recados a fornecer aos seus eleitores.

O Partido Liberal e o Partido Moderado conseguem costurar acordos em alguns episódios das duas primeiras temporadas, Hesselboe dialoga muito civilizadamente com Birgitte, e tudo isso sem que os dois partidos deixem de efetivamente significar alguma coisa, sem que deixem de sustentar programas definidos. É um tipo de dinâmica totalmente irreconhecível na grande maioria dos partidos brasileiros, nada mais que máquinas vazias de exploração do fundo partidário para o prestígio de caciques igualmente sem substância.

A característica mais chamativa da série, porém, é mesmo o contato direto com a vida política de um país que não tem a mesma mácula do patrimonialismo, tão presente em nossa cultura, conforme apontado por nossos principais autores liberais. Há quem conteste o diagnóstico do liberalismo brasileiro e da escola de sociólogos weberianos de que esse seria um dos grandes problemas de nosso país, mas é muito difícil sustentar, após assistir à série, que essa confusão grotesca entre as instituições políticas e o personalismo, da “coisa pública” com a coisa privada, essa perversão da impessoalidade da lei em prol da consagração de privilégios, se dê por lá na mesma intensidade – ou até com a mesma natureza – com que ocorre no Brasil.

Para que se tenha uma ideia, o problema da corrupção praticamente não é mencionado. Um dos maiores escândalos que aparecem na série é o caso, ainda no primeiro episódio, em que Hesselboe, diante de uma demanda algo histérica de sua esposa, usou um cartão do governo para fazer compras – um valor que ele, diga-se de passagem, iria devolver aos cofres do Estado. O incidente derrubou seu governo. O que esse acontecimento pareceria a nós, brasileiros, além de uma brincadeira de criança, em comparação aos assaltos monumentais, perpetrados por nossos políticos, a que nos acostumamos a assistir nos noticiários? Qual o grau de tolerância que os dinamarqueses teriam com os absurdos que vemos como habituais?

Em Borgen, vemos a primeira-ministra andar de bicicleta e os políticos circulando no dia a dia da sociedade. Já apenas como deputada, ela aparece na terceira temporada panfletando na rua para convocar o eleitorado a votar e conversar pessoalmente com o público. Os políticos não vivem em torres de marfim; não parece haver sinal de tiranos de toga se julgando o suprassumo da sociedade, com direito a jantares regados a lagosta e vinho importado. É difícil ver, entre todos os casos de tensão política e midiática apresentados na série, um só que se aproximaria daquilo que, nos padrões brasileiros, chamaríamos de corrupção. Nem mesmo o personagem mais vilanesco, Laugesen, aparece como um autêntico corrupto.

Borgen nos apresenta basicamente a um outro mundo – com algumas características universais, próprias da imperfeição humana e da natureza da atividade política, mas realmente soa como um outro mundo. Todo aquele que se interessa pelo tema tem na série uma excelente recomendação. É uma lição prática de como fazer política civilizadamente e uma amostra de costumes e disciplinas que todos os interessados na renovação positiva da vida pública brasileira deveriam perseguir.

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