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A felicidade de Epicuro e a culpa cristã
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Em sua coluna de hoje na Ilustrada da Folha, Contardo Calligaris joga a culpa de nossa “tristeza crônica” no colo do cristianismo, e contrapõe isso ao pensamento de Epicuro. O tema é fascinante. Até que ponto o sentimento de culpa incutido pelo cristianismo, com seu conceito de “pecado original”, serve para segurar ímpetos destrutivos do ser humano?

Não sei dizer. O que arrisco afirmar com mais convicção é que a alternativa parece utópica, qual seja, pensar ser possível abraçar um sentimento pleno de felicidade deixando essa culpa para trás. Foi a promessa dos libertinos de Maio de 68, e fracassou de forma retumbante. O carpe diem, o hedonismo desenfreado, o foco demasiado no “aqui e agora” não se mostrou capaz de entregar a felicidade prometida; muito ao contrário.

Dito isso, confesso ter alguma simpatia pelas ideias de Epicuro, desde que resgatadas de seus “seguidores” ou detratores. Muitos sequer leram o filósofo, e tomam pelos utilitaristas modernos sua base filosófica. Injusto com o grego.

Ao lado de Platão e Aristóteles, Epicuro foi um dos grandes filósofos da Grécia Antiga. A escola que ele fundou permaneceu aberta por quase oito séculos. Suas ideias influenciaram muitos pensadores modernos, principalmente desde o Iluminismo. Entretanto, as críticas à sua filosofia de vida foram ainda maiores.

Muitas delas, a meu ver, injustas, como as que alegam um caráter libertino e irresponsável de sua filosofia. Não me considero um epicurista, mas tampouco acho que o Jardim de Epicuro seja apenas o “jardim das aflições”. Pretendo explicar sucintamente os motivos.

De forma resumida, a doutrina de Epicuro é uma filosofia do prazer. Achar o caminho de maior felicidade e tranqüilidade, evitando a dor, era a máxima epicurista. No entanto, não se trata da busca de qualquer prazer, tal como o associado ao hedonismo moderno. Epicuro não faz uma defesa do carpe diem ou da libertinagem irresponsável.

O prazer em questão não é nunca trivial ou vulgar. Na carta a Meneceu, Epicuro afirma que “nem todo o prazer é digno de ser desejado”, da mesma forma que nem toda dor deve ser evitada incondicionalmente. A deturpação do conceito de prazer usado por Epicuro foi algo que ocorreu durante a sua vida, e ele teve, portanto, a oportunidade de rebater:

Quando dizemos então, que o prazer é a finalidade da nossa vida, não queremos referir-nos aos prazeres dos gozadores dissolutos, para os quais o alvo é o gozo em si. É isso que crêem os ignorantes ou aqueles que não compreendem a nossa doutrina ou querem, maldosamente, não entender a sua verdade. Para nós, prazer significa: não ter dores no âmbito físico e não sentir falta de serenidade no âmbito da alma.

Em outras palavras: a ataraxia. O utilitarismo de Bentham e Mill irá numa linha muito parecida a de Epicuro. John Stuart Mill afirma que “desde Epicuro até Bentham, todos os partidários da teoria da utilidade designaram pelo termo não algo que contrastasse com prazer, mas o prazer em si mesmo, bem como a ausência de dor; e, em vez de opor o útil ao agradável ou belo, sempre declararam que o termo designava precisamente estas coisas, entre outras”.

O uso popular, entretanto, estaria associado ao conceito de frivolidade, de “meros prazeres instantâneos”, contrário ao que se pretendia dizer. Mill explica: “Quando assim atacados, os epicuristas sempre responderam que não são eles, mas seus acusadores, que representam a natureza humana sob uma luz degradante, já que a acusação supõe os seres humanos como incapazes de sentir um prazer distinto do que sentem os suínos”.

Como se vê, a acusação de que o epicurista busca de maneira desenfreada os prazeres imediatos do corpo não faz sentido. Tampouco pega no epicurista a imagem de egoísta insensível fechado para o mundo. A satisfação egoísta a qualquer custo jamais poderia ser associada à filosofia de Epicuro, que depositava enorme importância na amizade. Para ele, “a faculdade de granjear amizades é de longe a mais eminente entre todas aquelas que contribuem para a sabedoria da felicidade”.

De fato, Epicuro demonstrou isso em sua vida, alimentando várias amizades. Por que, então, sua filosofia despertou tamanha reação negativa?

O doutor Sean Gabb, diretor da Libertarian Alliance, arrisca uma resposta em seu texto Epicurus: Father of the Enlightment, onde ele sustenta a tese de que a filosofia epicurista é precursora do liberalismo clássico. Para Gabb, esta filosofia mexeu com poderosos interesses na época, já que o terror religioso vinha sendo cada vez mais utilizado para controlar as massas.

A promessa de uma vida eterna e perfeita após a morte sempre foi um consolo poderoso para muitos, assim como a ameaça de punição eterna era poderosa arma. Uma filosofia que se dedica totalmente a esta vida – a única certa – não poderia ficar isenta de violentos ataques. Epicuro comprou uma briga e tanto ao afirmar coisas assim: “É sem valor pedir aos deuses aquilo que nós mesmos podemos realizar”.

Muitas religiões pregam o sofrimento durante a vida como nobre, como um ingresso para uma vida maravilhosa após a morte. Não é de espantar, portanto, ver os ataques passionais que uma filosofia defendendo a busca da felicidade mundana recebeu. Mas Epicuro estava mais preocupado em defender o que considerava útil aos homens nesta vida, do que dar, “sob o caloroso aplauso da multidão”, o seu “acordo em tolices”.

Sendo o temor pela punição eterna uma das maiores causas de submissão às autoridades políticas e religiosas, parecia claro que a filosofia de Epicuro encontraria muitos inimigos. Afinal, para Epicuro, quando nós existimos, a morte não existe, e quando chegar a morte, nós não somos mais nada. Ele simplesmente não parecia muito preocupado com a morte, mas sim com a vida.

E quando as pessoas estão voltadas para a felicidade em vida, torna-se mais difícil serem dominadas e controladas pelo medo da morte. Claro que surge a questão moral de quais seriam então os freios para os desejos na vida. Por que não matar ou roubar se isso parecer útil? Epicuro não dá, aparentemente, uma resposta satisfatória a esta pergunta. Ele diz apenas que “a vida do insensato é ingrata”, em “constante agitação”, e que o homem justo está livre desses distúrbios.

 Não consta que ele tenha agido de forma injusta em sua vida, assim como muitos dos seus seguidores.

Por outro lado, vários religiosos praticaram atos bárbaros justamente em nome da fé. Não creio que o bom comportamento dependa de fé divina. Será que os crentes que julgam estar somente na fé divina o freio para atos injustos, iriam sair matando e estuprando se começassem a duvidar da existência de Deus? Não estariam dando um atestado de perversão os que pensam assim, dependendo somente do medo de punição divina para não praticar o mal?

Por que, então, não me considero um epicurista? Parte da resposta pode ser encontrada naquilo que Adam Smith, em Teoria dos Sentimentos Morais, disse sobre Epicuro:

Segundo Epicuro, a virtude também não mereceria ser buscada por si mesma, nem seria em si um dos objetos fundamentais de apetite natural; seria desejável apenas graças à sua tendência a evitar dor e proporcionar bem-estar e prazer. Na opinião dos outros três (Platão, Aristóteles e Zenão), ao contrário, a virtude seria desejável não apenas como meio de proporcionar os outros objetivos primários do desejo natural, mas como algo que em si mesmo seria mais valioso do que todos estes. Pensavam que, sendo o homem nascido para a ação, sua felicidade deve consistir não apenas no que há de agradável nas suas paixões passivas, mas sobretudo na conveniência de seus esforços ativos.

O Utilitarismo faz sentido muitas vezes, já que a maioria busca maximizar a própria felicidade mesmo. Mas se a utilidade entrar em conflito com a virtude, esta deve prevalecer. Antes de se esquivar da dor e da angústia, deveria vir a busca da verdade e da justiça. A liberdade individual não é por mim defendida por ser a forma mais eficiente de maximizar felicidade – ainda que o seja, mas sim por ser a que entendo moralmente correta.

Além disso, uma filosofia que coloca o prazer como padrão de moralidade diz que qualquer coisa que leva ao prazer é desejável. Não faz, portanto, distinção entre essas coisas. Se para alguém o prazer está em invadir uma propriedade e para outro está em defender tal propriedade, não há um critério objetivo nesta filosofia que mostre quem está certo do ponto de vista ético. O Utilitarismo seria, nesse aspecto, amoral.

Dito isso, não vejo com aversão a filosofia de Epicuro. A Declaração de Independência Americana é clara ao mencionar o direito de cada um buscar a própria felicidade. Thomas Jefferson, em uma carta de 1819 para um amigo, chegou a se declarar um epicurista. Mises, em Human Action, afirma que a filosofia de Epicuro inaugurou uma emancipação espiritual, moral e intelectual da humanidade.

Todos aqueles que consideram, assim como eu, a felicidade nesta vida uma importante meta, ainda que não a única relevante, possuem algo de Epicuro também. Podemos não abraçar toda a sua filosofia. Mas isso não nos impede de extrair o que ela tem de correto. Não é, como afirmam alguns, uma defesa da libertinagem irresponsável. Alguns irresponsáveis libertinos é que podem buscar refúgio em Epicuro, mas estariam fazendo isso injustamente.

Trata-se de colocar a felicidade nessa vida como um objetivo de extrema importância, ainda que não o único. E quem não deseja evitar a dor e ser feliz neste mundo?

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