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A necessidade de controlar os apetites na era do sentimentalismo
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“A sociedade não pode existir, a menos que um poder que controle a vontade e o apetite seja colocado em algum lugar, e quanto menos exista interiormente, mais dele existirá exteriormente. Está ordenado na constituição eterna das coisas, que homens de mentes intemperantes não podem ser livres. Suas paixões forjam seus próprios grilhões.” – Edmund Burke

Passei o carnaval na ilustre “companhia” de Theodore Dalrymple, médico britânico cujo bom senso muito admiro. Em Our Culture, What’s Left of It, ele disseca a destruição de valores importantes para a cultura britânica, e por tabela, também para a cultura ocidental. Um dos sintomas por ele apontados é o excesso de sentimentalismo na atualidade, quando as pessoas confundem liberdade com deixar todas as suas emoções tomarem conta de suas ações, sem nenhum tipo de freio.

Dalrymple cita como exemplo a celeuma com a morte da princesa Diana, o sensacionalismo que tomou conta da imprensa, e a pressão popular para que a rainha expressasse publicamente algum sofrimento mais forte. Logo a família real, conhecida por não demonstrar em público fortes emoções, por ser contida, discreta e reservada. Como resume Dalrymple, os britânicos modernos imaginam que a resposta para a constipação é a diarreia. De um extremo ao outro, não há lugar para nenhum meio termo.

Em seguida, Dalrymple visita Shakespeare, em especial Macbeth, para nos lembrar da importância dos freios aos apetites humanos. O bardo nos esfrega na cara a realidade de que não existem consertos técnicos para a humanidade, algum tipo de panaceia capaz de nos livrar de nosso “pecado original”, de nossa natureza humana suscetível às paixões (no caso de Macbeth, a ambição).

O mal, em outras palavras, estará sempre à espreita, dentro de nós, pronto para ser despertado quando a vigília cai em sonolência. A linha divisória nem sempre é clara, e Shakespeare argumenta que todos nós somos, em potencial, agentes do mal, pois ele habita nossos corações. Praticar o bem não seria tanto uma questão de conhecimento, como pensava Platão, e sim de escolha moral, de um contínuo exercício de controlar nossos apetites mais básicos e “instintivos”.

O que Shakespeare destrói, portanto, é a utopia de que bastam novos arranjos sociais para eliminar o mal do mundo. O conceito de “pecado original” seria antagônico a esta visão otimista e ingênua. A tentação do mal será parte de nossas vidas como seres humanos imperfeitos. A busca da perfeição por meio da manipulação do ambiente estará sempre fadada ao fracasso, a despeito do que pensam os “engenheiros sociais”.

O autocontrole e o limite de nossos apetites são fundamentais nessa batalha eterna contra o mal, e dependem, em última instância, de cada indivíduo. Claro que as características do ambiente podem influenciar, ajudar ou atrapalhar esta luta contínua, mas não determinam seu resultado.

A lição, segundo Dalrymple, é que fortes emoções ou desejos, por mais que virtuosos em certas ocasiões, podem ser usados para maus propósitos se escaparem do controle ético. Shakespeare não era um defensor da ideia do bom selvagem que dá vazão às suas emoções e seus instintos apenas. Ao contrário: ele temia essa besta presente nos homens.

Em outras palavras, as restrições às nossas inclinações naturais, que se deixadas livres e soltas não levam automaticamente à prática do bem e com frequência nos levam à prática do mal, são uma condição necessária e indispensável para a existência civilizada da humanidade.

Pela ótica de Dalrymple, Shakespeare estaria entre os totalitários utópicos e os libertários fundamentalistas. Ele não nos oferecia resposta fácil para o dilema humano. Sua resposta não era nem a repressão severa e draconiana, nem a total leniência e permissividade, extremos defendidos por aqueles que caem na tentação de argumentar com princípios absolutos válidos inquestionável e invariavelmente. Há que se buscar uma proporção entre ambos, o que nos torna humanos.

Rodrigo Constantino

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