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Francisco Bosco ou Rolando Lero? Quando uma mente confusa posa de profunda…
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Bosco tendo um de seus pensamentos “profundos”…

Em sua coluna de hoje no GLOBO, Francisco Bosco tece pensamentos sobre a ética e a moral, e em determinado momento parece rebater críticas feitas a ele pelos leitores deste blog. Vários leitores apontaram, naquela sua tentativa de “dissecar” o meu livro Esquerda Caviar (que ele não leu), para o fato de que Bosco tenta falar bonito e de forma complicada, sem dizer coisa alguma. Seu relativismo moral foi condenado também, por mim mesmo, pois na hora de defender os black blocs ele consegue ser bem objetivo. Diz ele:

A dúvida e a hesitação intelectuais não representam necessariamente falta de clareza cognitiva ou coragem moral para se posicionar com firmeza diante da realidade. Pois muitas vezes a própria realidade não é clara e firme, e sim turva e ambígua. Nesses casos, ao contrário do que se poderia pensar, o estatuto cognitivo da dúvida é justamente a verdade, e seu estatuto moral é a coragem (não é fácil suportar a angústia da indecisão).

[…]

Quem chama de “pedante” alguém que escreve “difícil” (difícil para quem?) mobiliza um álibi moral para uma reação, no fundo, imaginária: sente-se diminuído porque sua incompreensão revela sua ignorância — e procura recalcar isso projetando no outro seu sentimento de inferioridade. De resto, é absurdo moralizar o que não se compreende.

Aqui chegamos ao cerne da questão. O conto de Hans Christian Anderson, publicado em 1837, já nos alertava para essa tática: se você não enxerga algo estupendo e magnífico, então claro que o problema só pode estar em você mesmo, em sua capacidade cognitiva. Não pode ver a linda roupa invisível do rei? Não pode compreender o que o pensador diz com seus rodeios repletos de termos pomposos? É porque apenas os muito inteligentes são capazes disso…

Só que o rei muitas vezes está nu mesmo. Há, infelizmente, quem escreva de forma deliberadamente difícil só para simular inteligência e profundidade, pois lhe faltam verdadeira inteligência e objetividade. A linguagem é muito importante para a comunicação, troca de ideias, raciocínio e debates. Portanto, é fundamental para preservar a liberdade. Dou tanto valor a isso que acrescentei um capítulo sobre o “duplipensar” nesse mesmo livro que Bosco tentou rebater sem ler. Segue um longo trecho:

Para Orwell, uma linguagem com regras aceitas e mutuamente compreendidas era condição indispensável a uma democracia aberta. Karl Popper era outro que defendia como um dever de todo intelectual “o cultivo de uma linguagem simples e despretensiosa”. E foi além: “Quem não pode falar de modo simples e claro deve calar-se e continuar trabalhando até que possa fazê-lo”.

Para Isaiah Berlin, a meta da filosofia é sempre “ajudar os homens na compreensão de si mesmos e assim operar na claridade, e não loucamente, no escuro”. Em seu livro A força das ideias, Berlin resume:

Uma retórica pretensiosa, uma obscuridade ou imprecisão deliberada ou compulsiva, uma arenga metafísica recheada de alusões irrelevantes ou desorientadoras a teorias científicas ou filosóficas (na melhor das hipóteses) mal compreendidas ou a nomes famosos, é um expediente antigo, mas no presente particularmente predominante, para ocultar a pobreza de pensamento ou a confusão, e às vezes perigosamente próximo da vigarice.

Muitos intelectuais da esquerda caviar tentam criar a impressão de profundidade, mesmo quando dizem algo mais raso que um pires. A Escola de Frankfurt ora vem à mente. Karl Popper, em O mito do contexto, chega a analisar trechos desses pensadores obscuros, e conclui sobre um deles:

É por razões deste teor que acho tão difícil discutir qualquer problema sério com o professor Habernas. Tenho certeza de que é perfeitamente sincero. Mas penso que não sabe como colocar as coisas de modo simples, claro e modesto, em vez de um modo impressionante. A maior parte do que diz parece-me trivial. O resto parece-me errado.

Outro Karl, o Kraus, também atacou esse tipo de postura: “Uma aparência de profundidade surge com frequência pelo fato de uma cabeça rasa ser ao mesmo tempo uma cabeça confusa”. Alguém aí pensou em Gilberto Gil? Roger Scruton, em The Uses of Pessimism, bate no mesmo ponto, mostrando como isso pode ser também uma tática deliberada:

Professores de ciências humanas aprenderam com seus mentores franceses que há uma forma de escrever que sempre será considerada “profunda”, contanto que ela seja (a) subversiva e (b) ininteligível. Enquanto um texto puder ser lido, de alguma forma, contra o status quo da cultura e da sociedade ocidentais, minando a sua pretensão de autoridade ou verdade, não importa que ele seja sem sentido. Pelo contrário, isso é apenas uma prova de que o seu argumento opera em um nível de profundidade que faz com que ele seja imune às críticas.

Alan Sokal adotou uma estratégia para desmascarar vários desses intelectuais. Mandou para uma famosa revista um artigo com título complexo, e trechos bem obscuros. Seu texto não só foi aceito, como gerou bastante reação positiva. Qual não foi a surpresa geral quando o autor confessou tratar-se de um emaranhado de frases soltas e sem sentido?

Sokal aprofundou então o tema em seu livro Imposturas intelectuais, que, segundo o próprio autor, “trata da mistificação, da linguagem deliberadamente obscura, dos pensamentos confusos e do emprego incorreto dos conceitos científicos”. São desmontadas certas táticas, como o uso de terminologia científica ou pseudocientífica sem dar a atenção ao seu real significado, ou a ostentação de erudição superficial, que recorre a termos técnicos fora de contexto, para impressionar. 

Eis a questão: Francisco Bosco ou Rolando Lero? Trata-se de um “pensador profundo” ou de uma mente confusa e rasa em busca de uma blindagem impermeável para ocultar a triste realidade? Há muita gente especializada na arte de não dizer absolutamente nada, mas de forma pedante. Ou gente que defende o que há de pior, como o socialismo e os vândalos niilistas dos black blocs, simulando uma superioridade moral, “elástica”, que no fundo serve somente para enaltecer o podre. Gente que escreve:

Os que querem pairar ou soar acima da moral dizem: “Eu não julgo”. Mas não se deve simplesmente abdicar da moral (seria um desastre), e sim alargá-la, complexificá-la, torná-la compreensiva (nos dois sentidos da palavra: abrangência e entendimento). Logo, eu julgo sim, o tempo todo, mas compreensivamente.

Uma pessoa mais “pé no chão” poderia perguntar, com ceticismo: que raios é “julgar compreensivamente”? Porque dá a nítida impressão de ser apenas relativizar a moral a ponto de abrigar nela muita coisa imoral, tipo vandalismo de mascarados vagabundos ou ditaduras socialistas, por conta de suas “conquistas sociais”. Não é mesmo?

Por essas e outras eu digo: eu julgo sim, o tempo todo, mas objetivamente.

Rodrigo Constantino

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