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O paradoxo de Stalin: o autoengano dos canalhas
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“Por pior que seja aos olhos dos outros, nenhum homem consegue suportar uma imagem horrível e repugnante de si mesmo por muito tempo.” (Eduardo Giannetti)

Ao revisar para a publicação a sua biografia oficial, o ditador Stalin ordenou que fosse incluída uma frase mencionando que ele jamais deixou que seu trabalho fosse prejudicado pela mais leve sombra de vaidade, presunção ou idolatria. Negar dessa forma tão grotesca a vaidade é justamente confessá-la abertamente, aos brados! A questão que fica é se o ditador soviético pretendia enganar de forma deliberada seu público ou se mentia para si mesmo. Normalmente, o hipócrita é mais calculista, medindo os efeitos de seus atos e colocando-se no lugar da vítima, para não errar o alvo. Um absurdo tão flagrante desses parece mais ser um caso de enorme auto-engano mesmo. Mas nunca se sabe!

O auto-engano é uma estratégia útil para a sobrevivência e procriação das espécies. Temos inúmeros casos entre os diferentes seres vivos, desde vírus, passando por plantas, animais e finalmente o homem. Evidentemente que não faz muito sentido falar em auto-engano para animais sem consciência, pois se trata apenas de um mecanismo automático do seu instinto de sobrevivência. Mas a analogia não deixa de ser útil, quando sabemos que uma cobra-coral falsa age como a verdadeira, ainda que sem seu veneno, intimidando os possíveis predadores. Como diz Eduardo Giannetti, em seu livro Auto-Engano: “O enganador auto-enganado, convencido sinceramente do seu próprio engano, é uma máquina de enganar mais habilidosa e competente em sua arte do que o enganador frio e calculista”. O enganador embarca em suas próprias mentiras, e passa a acreditar nelas com toda a inocência e boa-fé do mundo. Assim fica mais fácil convencer os demais.

A fé dogmática na ideologia é uma arma poderosa para o auto-engano, permitindo as maiores atrocidades em nome da causa. O fervor religioso sempre trouxe consigo tal perigo, especialmente na seita socialista. Os corruptos não se vêem como tais, pois roubam “em nome da causa”, ainda que os benefícios concretos sejam bem individuais. Os assassinos são perdoados pois “os fins justificam os meios”. Entre seus líderes e seguidores, resta apenas identificar os hipócritas oportunistas e a legião de inocentes úteis, ludibriada pela fé, ou seja, os sinceramente errados. “O auto-engano coletivo em grande escala é a resultante trágica e grotesca de uma multidão de auto-enganos sincronizados entre si no plano individual”, afirma Giannetti.

Os exemplos oferecidos pelo autor são a Inquisição ibérica, o nazismo e o comunismo. A cura está no pensamento independente, rigoroso com a lógica e a veracidade dos fatos. Como coloca o autor, “abrir-se à dúvida radical – à possibilidade de que estejamos seriamente enganados sobre nós mesmos e sobre as crenças, paixões e valores que nos governam – é abrir-se à oportunidade de rever e avançar”. Ou seja, “é ousar saber quem se é para poder repensar a vida e tornar-se quem se pode ser“. O princípio socrático de autoconhecimento seria parte indispensável da melhor vida ao nosso alcance.

Entretanto, Giannetti assume que “a condição humana não comporta demasiado autoconhecimento”. Em outras palavras, há um limite até onde podemos ir, sem perder a faísca das paixões e virar uma máquina fria e calculista. Conforme o “homem subterrâneo” de Dostoievski diz, “há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo, e qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas”.

A busca da objetividade é fundamental, portanto. Segundo Giannetti, “o ideal da objetividade cobra do sujeito do conhecimento uma disciplina que não é apenas técnica e intelectual”. A ética é imprescindível. Ele diz: “A boa conduta da mente no esforço cognitivo requer, entre outras coisas, a honestidade de não se dar como sabido o que se ignora, o respeito à evidência e a disposição de não facilitar as coisas para si mesmo”. Quantos não buscam justamente conforto em vez de fatos incômodos para as crenças preconcebidas?! Darwin chegou a criar sua “regra de ouro” metodológica, para driblar o auto-engano. Ela consistia em registrar prontamente por escrito qualquer fato empírico ou argumento contrário àquilo que ele tendia a acreditar.

O auto-engano não é a ignorância simples de não saber e reconhecer que não sabe. Ele é a pretensão ilusória e infundada do autoconhecimento, uma certeza de saber sem saber na verdade. A ignorância é não saber de algo; a estupidez é não admitir esta ignorância. Mas isso não é o mesmo que negar a possibilidade do conhecimento. “Descartar a possibilidade de um conhecimento final e afirmar o caráter hipotético de todo saber não significa, contudo, cair no extremo oposto de que nada é ou pode ser conhecido”, escreve Giannetti.

O fervor religioso é uma das grandes causas do auto-engano em larga escala. Ele, com freqüência, “mobiliza aquilo que um homem tem de melhor e de mais elevado para colocá-lo a serviço do que há de pior e mais abominável”. Um exemplo citado por Giannetti é o caso do imperativo cristão de “amar ao próximo como a si mesmo”. Estender aos outros o amor-próprio é irrealista. Distribuir o amor de forma rigorosamente igualitária significa destruí-lo. Giannetti é direto: “Quem diz que ama o próximo como a si mesmo não pensa no que diz ou está mentindo – alimenta-se e dorme regularmente enquanto tem gente passando fome na esquina”. Mas o auto-engano de que realmente se acredita na máxima religiosa faz o crente se sentir bem, mesmo que não esteja professando uma verdade. Note-se que isso não é o mesmo que hipocrisia, onde o sujeito deliberadamente afirma algo sabendo ser falso. O auto-engano é, por natureza, uma ocorrência passiva, e não resultado de má-fé. Diferente do engano interpessoal, o auto-engano não é consciente ou deliberado.

O envolvimento de emoções fortes e poderosas no processo de formação de crenças é motivo de sobra para que se proceda com máxima cautela. Como bem coloca Giannetti, “o brilho intenso ofusca e é inimigo da luz”. Todos aqueles que divulgam aos ventos como são altruístas, colocando sempre o interesse dos outros acima do próprio e se sentindo o mais justo dos homens, deveriam parar para pensar friamente em sua solidão. Seus atos correspondem ao que a boca diz? Afinal, na maioria dos casos os “altruístas” não passam de egoístas exigindo o sacrifício alheio em benefício próprio. Podem ser apenas mais algumas vítimas do paradoxo de Stalin…

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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