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Piada é coisa séria! Ou: Quem teme a sátira política?
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O humor é uma arma importante para o avanço de uma sociedade. Quando se trata de política, então, ele passa a ser fundamental. É um instrumento que ajuda a expor certas características, ainda que de forma caricatural, levando a mensagem a um público mais amplo. Tanto é uma ferramenta importante que os políticos morrem de medo dela, e tentam proibí-la. No Brasil conseguiram.

Em sua coluna de estreia no Instituto Liberal, Flavio Morgenstern fez um longo ensaio mostrando a ampla utilização das piadas na política americana, e a comparando em seguida com o cenário brasileiro. Estamos amordaçados! Está certo que é difícil até competir com os próprios políticos, que parecem humoristas hilários quando falam a sério; mas temos o direito de fazer troça com a cara deles.

O autor apresenta os argumentos em defesa da legalização da piada nas eleições:

A sátira, a visão cínica da existência, a piada que vai da refinada ironia machadiana até o ataque sardônico, foi uma das maiores conquistas da humanidade. A grande vantagem do Ocidente civilizado em relação ao restante do mundo é que é uma sociedade que nasceu da auto-crítica.

A auto-crítica visceral, não apenas a versão fofinha e diluída, a sátira Merthiolate-que-não-arde. Os países com debates públicos mais civilizados do mundo, os anglo-saxões e os judeus, aprenderam a arte da piada visceral no âmago de suas vidas públicas.

A política é o fenômeno do público, das decisões que um indivíduo não pode tomar sozinho – como o que é permitido, impróprio ou proibido de fazer em vias públicas, ou com incapazes. Todavia, traz em seu bojo o poder de força física, a potentia, para assegurar o poder legal, potestas, criado pelo poder político, autoritas. Assim, temos sempre uma força física – de lei, de impostos, de obrigações públicas – que pode muitas vezes ser usada para funções ridículas criadas por leis ridículas.

A única forma de a lei e a existência pública serem purificadas desde a raiz e mostradas em sua realidade nua e crua, in true colours, é através da visão dos sátiros. O humor, a derrisão, a visualização do ridículo no que as pessoas levam como normalidade, é a coisa mais séria do mundo junto com a própria filosofia.

A filosofia se divide sobretudo em três áreas: a epistemologia busca o que é verdadeiro; a ética, o que é bom; e a estética, o que é belo. Todavia, é uma busca única, e por muitas vezes, o que é mau também pode ser cafona. É este o material do humorista. Muitos bons piadistas apenas atuam de uma maneira de um filósofo notando erros em seus compatriotas – ou em outros filósofos.

Não sem razão, políticos odeiam o humor. Porque uma piada bem feita não é como o belo e incisivo discurso de um adversário – mesmo se for dos melhores da humanidade, como as Catilinárias de Cícero, contra os planos de Catilina de tomar o Senado – espécie de mensalão da Antiguidade.

A piada, por óbvio, não é apenas uma denúncia argumentativa e racional ou moral, mas é feita para rir. Atinge até a fisiologia do ouvinte. Não há escape para a contemplação do excêntrico. É uma das forças mais poderosas do mundo.

Um político com poder não apenas passa vergonha: perde o poder quando é alvo de piada. Era para os homens públicos terem cuidado com a coisa pública (res publica) que os festivais de comédia eram sagradosem Atenas. Para fazer os políticos tomarem cuidado, e não agirem na vida pública como atuam na privada.

As comédias gregas, ao contrário das tragédias, não costumam lidar com os heróis dos mitos, mas com os próprios cidadãos atenienses. Exatamente os que estavam na plateia: Sócrates, tendo seu método ridicularizado na comédia As Nuvens, de Aristófanes, provavelmente estava na plateia na única vez em que a peça foi encenada. Algo como se HamletFausto ou Um Bonde Chamado Desejo fossem escritas para serem encenadas uma única vez.

Com a ascensão do Estado moderno, a mentalidade rebanhista dos revolucionários, o novo messianismo e o Estado gigante atuando e politizando todos os aspectos da vida, cada vez mais voltamos ao tempo dos faraós e reis legisladores, quanto mais acreditamos estarmos nos afastando do obscurantismo. O governante cada vez mais se confunde com o próprio Estado.

Fazer uma piada com um político, sobretudo em período eleitoral, para nossos moderninhos de plantão, não é apenas fazer um político passar vergonha: seria uma afronta ao próprio regime. A crença alquimista moderna é transformar latão em ouro através da política.

Como dizia Frédéric Bastiat sobre o socialismo, seu maior crime é que um sistema que exige cumplicidade forçada de toda a sociedade tomará qualquer crítica a si como uma crítica ao próprio povo. Assim, qualquer visão negativa sobre sua ditadura totalitária é encarada como uma traição a toda uma população, merecendo sempre a pena de morte – e legando as pilhas de cadáveres anônimos que chegaram aos 150 milhões após sua morte.

Quando o Tribunal Superior Eleitoral no Brasil proíbe piadas com candidatos e até mesmo menção a seus nomes na mídia no período eleitoral, logo após a curiosa indicação do ministro Dias Toffoli para sua presidência – e ninguém no país encarna melhor a mimetização entre partido e governo do que o ministro do STF indicado por ser advogado do PT – o que o Tribunal faz não é senão proibir o que a civilização ocidental tem de maior vantagem e maior originalidade.

O motivo é claro e duplo: além de um político preferir um adversário demonstrando suas mentiras do que uma piada realmente engraçada tendo-o como alvo, o partido em comando no país quer se transformar no próprio Estado – a “hegemonia partidária” de que falava Dirceu, dizendo que a Venezuela e o Uruguai “já conseguiram”. É uma política que se leva a sério. Exige que a sociedade inteira acredite em seu projeto coletivamente para funcionar. Haver uma narrativa com ironia, com algum desgosto, vendo a coisa cinicamente como ela é, ensina o povo a ver que o que é considerado positivo diante de seu nariz na verdade é grotesco, feio, atroz, ridículo. O rei está nu.

Nenhum partido buscando a hegemonia totalitária pode sequer conviver com esta hipótese.

A pretensão de uma “igualdade” entre candidatos, proíbem que se diga dos candidatos verdades e incisões que só são desconfortáveis aos próprios candidatos. Justamente coisas que são positivas a quem precisa escolher candidatos – políticos que terão poder sobre as próprias carteiras e liberdades do eleitor. É sempre com uma bela desculpa que se instaura a pior das tiranias.

Graças a uma lei de inspiração fascistóide, não temos piadas como nos países de debate público mais civilizado. Não temos, na verdade, sequer menções a quem disputa nosso voto, cada vez mais tratado como formalidade para que políticos obtenham poder sobre nós, e poder cada vez mais total.

Por acaso estamos numa melhor situação para eleger candidatos do que sem Simpsons, South Park e Saturday Night Live por perto? É criando novas leis para proteger não o povo, mas os fazedores de leis, que nossa liberdade virá?

A lei aparece numa hora “perfeita”, aquilo que os gregos chamam de kairós, o tempo exato para se realizar algo: a conjuntura política nacional dá mostras altas de esgotamento do discurso oficial governista, seus números, apesar de não entendidos, não convencem a população que conhece a realidade e cada vez mais parecem eles próprios uma caricatura.

Alguém tem alguma dúvida de qual seria o principal alvo de piadas de qualquer piadista no país, senão uma candidata específica? Talvez seja um dos principais fatores para sua sobrevivência na corrida presidencial: não poder haver comentários sobre sua política, sua desconexão entre discurso e realidade, ninguém estar permitido a fazer uma piadinha sua em público.

Resta apenas a própria política como piada. E inverte-se o papel purificador: é agora o legislador que ri de nossa posição ridícula, por estarmos amordaçados.

Se um político não aguenta nem conviver com o peso de uma piada, preferindo a força da lei para coibi-la, como podemos supor que ele poderá algum dia conviver com a verdade?

Rodrigo Constantino

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