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Anuário Brasileiro de Segurança Pública

Fechamento de escolas causado por violência extrema cresce 245% em dois anos no Brasil

Episódios de violência em escolas relatados no estado do Rio Grande do Norte são aproximadamente oito vezes mais que a média nacional.
Episódios de violência em escolas relatados no estado do Rio Grande do Norte são aproximadamente oito vezes mais que a média nacional. O estado conviveu com uma série de ações criminosas específicas no período analisado. (foto ilustrativa) (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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No dia 23 de outubro de 2023, um adolescente de 16 anos levou para a Escola Estadual Sapopemba, na zona leste de São Paulo, uma arma que achou escondida na casa do pai e, por volta das 7h20, abriu fogo contra os colegas. Uma estudante de 17 anos foi baleada na cabeça e morreu. Outras duas foram feridas no tórax e na clavícula. Um quarto aluno se machucou ao tentar fugir durante o ataque e o responsável pelo crime foi apreendido pela Polícia Militar (PM) logo depois. 

Foi o segundo ataque com vítimas fatais dentro de uma escola na capital paulista em apenas sete meses naquele ano. Em março, uma professora de 71 anos morreu e quatro pessoas ficaram feridas após serem atacadas com faca por um aluno do oitavo ano da Escola Estadual Thomazia Montoro, na zona oeste de São Paulo. O assassino, um menino de 13 anos, foi desarmado por uma professora e posteriormente levado para uma unidade da Fundação Casa. Em comum, ambos os casos haviam sido planejados, estimulados e divulgados previamente em grupos de redes sociais.

De lá para cá, outros episódios de violência extrema no ambiente escolar não param de se acumular em São Paulo e Brasil afora. Na última quinta-feira (7), por exemplo, um adolescente armado com uma faca invadiu a Escola Estadual Tenente, em Cotia, na Grande São Paulo, e de acordo com a polícia só não aconteceu uma tragédia por que os professores suspenderam as aulas e trancaram as salas com os alunos dentro até a chegada da Guarda Municipal, que apreendeu o agressor e fez uma varredura no local.

A cada oito escolas do país, uma conviveu com a iminência de uma violência de grande repercussão, ainda que não consumada.

Somados, esses casos integram uma estatística alarmante. As interrupções no calendário escolar de instituições de ensino brasileiras provocadas por episódios considerados de violência extrema cresceram 245,6% em dois anos. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, 3,6% das escolas brasileiras cujos diretores responderam ao questionário do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) informaram que o calendário escolar foi interrompido durante vários dias devido a episódios de violência. Trata-se de um crescimento expressivo em relação a 2021, quando apenas 1% das escolas reportaram esse tipo de paralisação.

Uma análise da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) divulgada em abril, também com dados de até 2023, já havia apontado que a violência escolar havia mais que triplicado no Brasil em um período de 10 anos. Naquele ano, segundo o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), 13,1 mil pacientes foram atendidos em serviços públicos e privados de saúde, após se automutilarem, tentarem suicídio ou sofrerem ataques psicológicos e físicos no contexto educacional. Em 2013, foram 3,7 mil episódios.

"Os episódios, ameaças e tentativas de ataques de violência extrema ocorridos em 2023 certamente impactaram nessa variação ascendente do fenômeno neste período", afirma o relatório do anuário sobre o tema neste ano. "Uma pesquisa realizada pelo Inep e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2023 estimou que 12,6% das escolas brasileiras relataram ter sido alvo de ameaça ou tentativa de ataque nos 12 meses anteriores à coleta dos dados. Em outras palavras, a cada oito escolas do país, uma conviveu com a iminência de uma violência de grande repercussão, ainda que não consumada”, afirma a análise do Fórum.

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Duas em cada três escolas relatam episódios de bullying

Apenas em 2023, foram pelo menos 15 ataques a escolas com vítimas fatais ou feridas Brasil afora. Outro dado que chama a atenção é o registro de casos de bullying: duas em cada três escolas brasileiras relataram ter vivenciado episódios de bullying grave ao longo do ano letivo.

“O bullying é algo muito sério e acontece de forma sistemática, não é episódico, é sistêmico e muito perigoso”, afirma o advogado e professor Felipe Martarelli, especialista no tema bullying e ambiente escolar, autor de um livro sobre o tema. “Essa situação obviamente não explica nem justifica um episódio de violência extrema na escola, mas muitas vezes pode ser gatilho de algo mais grave de lado a lado”, diz.

“Fora isso, o prejuízo que essa violência psicológica causa nas vítimas é muito grande. Compromete o aprendizado e todo o ambiente escolar e deixa sequelas para a vida inteira”, acrescenta Martarelli.

Ele pontua que, desde 2024, o bullying é crime — se praticado por menor de idade, é um ato infracional análogo. “Muitas vezes, a escola prefere empurrar o problema para debaixo do tapete, ser leniente com o problema, para evitar confusão. Passou da hora de uma resposta firme e estruturada da  sociedade: pais, escolas e governos”, afirma.

“A violência no ambiente escolar não está melhorando, só está piorando”, afirma a psicóloga Luciana Inocêncio, especialista em crianças e adolescentes e violência escolar, que atuou no atendimento aos sobreviventes e familiares das vítimas do massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo, em 2019. O ataque deixou 10 mortos, incluindo os dois assassinos, que eram ex-alunos da escola. 

“Existem dois cenários muito comuns na violência direcionada contra escolas e alunos: um é o caso de quem sofreu ou percebe que sofreu bullying e resolve se vingar disso matando ou tentando matar aquele ou aqueles que seriam responsáveis por isso. O outro é algo ainda mais perverso, que é a escolha aleatória dos alvos, pelo simples fato de serem estudantes em uma escola”, explica a psicóloga. “Fora os ataques em si, os episódios de brigas e outras situações que terminam em violência grave também só aumentam."

Na análise da especialista, crianças e adolescentes estão muito expostos à violência, sadismo e maldade extremos nas redes sociais, sem nenhum filtro. "Isso se reflete no comportamento cada vez mais agressivo delas”, diz a especialista.

"A escola assume uma responsabilidade que ultrapassa a educação formal, que é a desestruturação do núcleo familiar, do abandono, da violência sofrida em casa, do celular grudado no rosto o dia inteiro, que a escola sozinha não tem como resolver”, aponta a psicóloga Luciana Inocêncio.

Para ela, é necessário um pacto e um programa com ações concretas de saúde mental e contra a violência no âmbito escolar, e o que já existe por parte do poder público é insipiente. “Precisamos de planos efetivos de atendimento psicológico nas escolas, escuta coletiva, resolução mediada dos conflitos, aumento da estrutura de segurança nas escolas… precisamos também atacar de frente o bullying, a exposição de violência sem filtros na internet e, principalmente, a falta de perspectiva, de sonhos, a evasão escolar. É necessário um novo pacto social entre escola, família, governo e comunidade.

Episódios de violência em escolas impactam negativamente no aprendizado

Para além dos ataques e ameaças a escolas em si, os números do relatório englobam paralisações escolares provocadas por tiroteios, toques de recolher, suspensão de aulas e interrupção temporária de serviços públicos essenciais, como o sistema de transporte, em regiões deflagradas de alta criminalidade — como é comum na região metropolitana do Rio de Janeiro e algumas cidades do Nordeste, por exemplo.

No anuário, destaca-se o percentual de escolas do estado do Rio Grande do Norte que reportaram interrupção do calendário por episódios de violência: 29%, aproximadamente oito vezes superior à média nacional. O estado conviveu com uma série de ações criminosas específicas no período analisado. Em 2023, 19 de seus municípios foram alvo de ações coordenadas pela facção que domina o crime organizado no estado, resultando em muitos dias de aula perdidos.

"Em territórios em que há disputas entre o crime organizado, bem como políticas de segurança baseadas em sua repressão armada, a proporção de escolas que paralisaram o calendário em 2023 segue, como observado em 2021, em patamar elevado, como é o caso do estado do Rio de Janeiro (8,7%). Na Bahia (5,1%) e em estados da Amazônia, o fenômeno tende a se relacionar a lógica semelhante”, afirmam os pesquisadores no anuário.

“Isso tudo tem um impacto gigante no aprendizado dos alunos vítimas desses episódios, um cérebro estressado não consegue aprender”, afirma a neuropsicóloga e psicopedagoga Luciana Garcia. “Essas situações de estresse intenso provocados por episódios de violência extrema mexem com todo o funcionamento do cérebro, principalmente naqueles ainda em formação, como dos alunos: atenção, raciocínio e controle emocional ficam alterados. Em um ambiente violento é quase impossível apreender.”

A especialista explica que essa situação, se muito intensa, pode provocar alterações de humor, ansiedade crônica, distúrbios do sono comportamento agressivo ou letárgico, depressão, impulsividade e vários outros sintomas nos alunos impactados, o que atrapalha na formação dos jovens e pode se estender pela vida adulta. 

“Isso faz com que a escola deixe de ser percebida e sentida como um local seguro, de acolhimento e estímulo, e pode influenciar até na evasão escolar ao longo da vida. Isso vai ter impactos na formação universitária, no mercado de trabalho, na saúde pública e no crescimento do país, com reflexos sobre toda população", afirma Garcia.

“É necessário acompanhamento psicológico permanente no ambiente escolar, trazer as famílias para a comunidade, participar, identificar e tratar os casos de bullying adequadamente, capacitar os profissionais e criar ambientes mais seguros para tentarmos começar a resolver isso", acrescenta ela.

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