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Marisete simula uso de comprimidos: um ano de tratamento | Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo
Marisete simula uso de comprimidos: um ano de tratamento| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

O negócio das cápsulas

Ainda hoje, é fácil conseguir uma receita médica para a compra de antidepressivos e moderadores de apetite, principalmente porque todos os médicos, sem exceção, podem receitar a compra. Uma lei de 1958 garante esse direito. O problema é que nem to­­dos os profissionais seguem uma conduta ética.

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Esqueça aquelas horas passadas na academia para perder míseras 300 calorias. Também não é preciso sofrer mais fechando a boca durante as refeições: para conseguir emagrecer rápido, basta tomar moderadores de apetite. Essa receita suicida está na porta de muitos consultórios brasileiros e há décadas faz a cabeça das mulheres. Quem quer conquistar a silhueta desejada até pode enfrentar o bisturi, mas tende a não dispensar uma ida à farmácia. Essa conversa parece coisa de maluco, mas é reproduzida o tempo todo nos salões de beleza, na rua e dentro de muitas residências brasileiras – inclusive entre mãe e filha.

Quem se vê tentada a emagrecer fácil e em poucos dias, cai na armadilha da "poção mágica" – os remédios de uso controlado. O que muitos não se dão conta, po­­rém, é de que os prejuízos podem ser maiores do que o provocado pelas drogas ilícitas. Foi assim com Marisete*. Depois da cirurgia de redução de estômago, sete comprimidos diários "resolviam" o medo de voltar a se ver gor­­da diante do espelho. "É a au­­toestima. Você toma um, acha que não dá efeito, então aumenta a dose por conta própria", confidencia.

Marisete foi internada na semana passada por iniciativa do marido. Ele percebeu que a companheira não passava sem, no mínimo, sete comprimidos diários, incluindo estimulantes e antidepressivos. "Para dormir, precisava tomar um tipo de me­­dicamento. Para conseguir ficar acordada, tomava outro. Foram dez anos assim", conta ele. Ma­­risete se tornou uma pessoa irritada, depressiva, antissocial. Chegava a oferecer remédios para dormir às visitas, alegando que os comprimidos melhoravam a qualidade do sono. Até o casamento ficou ameaçado, porque ela não demonstrava mais atração pelo marido. A promessa de separação deu resultado: Marisete aceitou ser internada, ficou cinco dias no hospital e agora passará quase um ano em tratamento psiquiátrico para fazer a desintoxicação: um prejuízo financeiro e emocional, de acordo com os dois.

A dependência química por remédios é muito semelhante à da maconha, cocaína, heroína: dificilmente o usuário assume ser um dependente. "O usuário só se dá conta do problema quando percebe que não vive mais sem o remédio. O organismo precisa da substância para funcionar, ou seja, para ir ao banheiro, para dormir, para acordar", ex­­plica o médico Marcelo Niel, co­­la­­borador do Programa de Orien­­tação e Assistência a Depen­den­tes (Proad), da Universidade Fe­­deral de São Paulo. As mulheres são as principais vítimas. "Elas não aceitam estar quatro ou cinco quilos acima do peso. O ho­­mem normalmente não presta atenção nisso", comenta Niel.

Segundo o último levantamento do Sistema Nacional de Informações Tóxico Farmaco­lógicas (Sinitox), a medicação descontrolada e o acesso fácil a alguns remédios resultaram em 34 mil pessoas intoxicadas por medicamentos no Brasil em 2007. Somente no Paraná foram 9,2 mil casos: 65% eram mulheres. Durante uma das fiscalizações nas farmácias de manipulação, há três anos, a Secretaria Municipal de Saúde traçou o perfil deste público feminino por meio do receituário guardado após a venda do medicamento. São mulheres entre 20 e 35 anos, das classes média e alta. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), também de 2007, destacam o problema: as cápsulas para emagrecer estavam em primeiro lugar no ran­king de consumo de medicamen­tos entre janeiro e julho daquele ano. Foram 170 milhões de comprimidos consumidos.

"A anfetamina e seus derivados têm um alto índice de dependência e podem desencadear transtornos psíquicos. O usuário corre o risco de desenvolver quadros de psicose, insônia, ter mo­­mentos de euforia e depois de depressão. Há, inclusive, riscos de suicídio", explica Niel.

Por isso, há apenas uma indicação para o uso de emagrecedores: em situações reais de obesidade mórbida, quando o Índice de Massa Corpórea (IMC) ultrapassa 40. Para fazer o cálculo, dividida-se o peso por duas vezes a altura. Para todos os outros casos, o peso indesejado deve ser resolvido com uma dieta balanceada – orientada por um profissional – e com a prática regular de exercícios físicos.

"Quem aumenta cada vez mais as doses dos remédios, sonhando emagrecer rápido, engana-se e corre o risco de morrer por causa de uma possível parada cardíaca. Quanto mais se toma, mais o organismo cria tolerância ao remédio e, assim, baixa os resultados esperados. O que aumenta, na verdade, são os efeitos colaterais. Isso quer dizer que se pode engordar tudo de novo", afirma a endocrinologista Mônica Wright Kastrup, do Conselho Regional de Medicina no Paraná.

* Marisete: o nome é fictício, a pedido da entrevistada

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