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Aos 27 anos, o oncologista britânico Sir David Lane (foto), hoje com 60 anos, realizou uma descoberta que daria novos rumos à compreensão de uma das doenças mais enigmáticas e temidas pela humanidade, o câncer. Ele descreveu o mecanismo em que células normais se transformam em cancerosas – um processo silencioso que ocorre pela falha de uma proteína que ele e seus colegas batizaram de p53. Num sistema sadio, há a destruição de células com DNA danificado, impedindo a divisão e multiplicação. Em 50% dos tumores – descobriu-se mais tarde –, a p53 está desativada ou apresenta defeitos, o que leva ao desenvolvimento da doença.

A descoberta rendeu a Lane uma série de honrarias, prêmios e cargos importantes. Foi condecorado cavaleiro do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II em 2000 e atualmente é cientista-chefe do Cancer Research UK, maior instituto de pesquisa do setor no Reino Unido. De licença do posto, trabalha na área de desenvolvimento de medicamentos, na Agência de Ciência, Tecnologia e Inovação de Cingapura (A*STAR –). Na semana passada, o cientista esteve em Curitiba para ministrar palestra na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bem humorado e didático nas explicações, ele recebeu a Gazeta do Povo para uma entrevista exclusiva.

O quanto sabemos sobre o câncer? Há a sensação de que, apesar dos avanços das últimas décadas, o câncer ainda é uma doença desconhecida, que estamos apenas começando a compreender. É isso mesmo?

Sim, ainda estamos no começo. Mas nós estamos adquirindo conhecimento muito rápido, porque nós percebemos que danos no DNA das células causam câncer, agora nós podemos sequenciar o DNA de forma rápida e barata, e nos últimos cinco anos temos conseguido mapear o DNA de alguns tumores, e isso propiciou uma grande mudança. Sabemos que há muitas formas da doença, mesmo quando se fala de um mesmo tipo de câncer, pois há diferentes tipos de mutação em diferentes células, o que é muito complicado. Esses conhecimentos têm sido muito úteis para conhecer a doença. Outra coisa que emergiu disso tudo é que há cânceres que são velhos, que estão no corpo das pessoas por muito tempo antes de ser detectado. Estudos com câncer de cólon mostram que as células tumorosas têm estado ali por talvez 20 anos antes do desenvolvimento da doença, e isso pra mim é encorajador, pois mostra que podemos detectar o câncer ainda cedo. É um tempo de muitas mudanças. Outra coisa é a prova final de que o sistema imunológico pode eliminar o câncer, e isso pode propiciar novas drogas que podem fazer o sistema imunológico acordar e combater a doença. É um tempo de mudanças muito animador.

Poderemos falar, um dia, em uma cura única para todos os tipos de câncer, ou o tratamento será muito personalizado?

Acho que chegaremos a um nível em que haverá muitas formas de atacar o câncer, e ajustaremos o tratamento para cada pessoa e para um câncer muito particular. Não haverá tratamento para câncer de mama, haverá tratamento para um determinado tipo de mutação. E pode ser que usemos a mesma droga para tratar um câncer de mama e um de pulmão, se eles possuírem a mesma forma de mutação. Fica claro que o custo baixo do sequenciamento genético permitirá o diagnóstico em um nível molecular, diferentemente do que fazemos hoje, em um nível histológico (em nível celular ou a partir do tecido). E já estamos vendo isso acontecer, em que o sequenciamento permite saber qual é a droga correta para tratar as mutações.

Como o sequenciamento permite isso?

Um exemplo é o caso da leucemia mieloide crônica [que ocorre por uma transposição entre os cromossomos nove e 22, em que duas sequências de genes, BCR e ABL, uma em cada cromossomo, ao se justaporem, provocam a doença], e que responde muito bem a uma droga chamada Glivec, que tem salvado muitas vidas. Mas ela não funciona em outros tipos de câncer, pois eles não apresentam essa transposição, essa mutação. E então, neste sentido, você precisa saber se o câncer e a droga pesquisada "combinam" [e isso é possível por meio do sequenciamento, que evidencia a natureza da mutação e em qual gene ela ocorre]. Se nós tivéssemos testado a Glivec em muitas pessoas com outros cânceres, como fazíamos, nós nunca teríamos descoberto que essa era uma boa droga, pois a leucemia mieloide crônica é muito rara e nós não teríamos tratado muitos pacientes [com esse tipo de câncer]. E é isso que vai ocorrer no futuro: entender o defeito da molécula para tratar o câncer.

Uma das razões para tanta animação sobre a p53 é que ela é um tipo de molécula defeituosa muito comum nos cânceres, então, se tivermos uma droga contra isso, ela será útil no tratamento de diferentes tipos de câncer.

Qual o conselho o senhor daria para uma pessoa que possui um parente com câncer e que está com medo de desenvolver a doença?

Muitos cânceres ocorrem de forma espontânea. E sabemos que podemos fazer muito para nos prevenir, a partir de pequenas coisas muitos chatas, como não fumar, não beber demais, não engordar. É um pouco difícil, mas é importante seguir isso. E vá ao médico cedo se tiver sintomas, se cuide, esteja alerta. E faça o screening (diagnóstico do câncer na fase pré-sintomática, como no caso da mamografia). É fácil de se fazer e pode salvar muitas vidas. Quando as pessoas dizem que não há nada que possam fazer para se prevenir, eu digo que isso não é verdade. Se você possui um risco muito alto de câncer, como é o caso da Angelina Jolie (que realizou uma mastectomia preventiva por ter um risco muito alto de ter câncer de mama), então você deve pensar sobre isso, falar com seu médico; mas isso é muito raro, e mesmo tendo um parente com a doença, isso não significa que você também desenvolverá câncer, é uma situação muito particular.

As pessoas não podem se preocupar demais, isso também não é bom. É muito provável que você venha a ter um parente que morrerá de câncer, simplesmente porque uma em cada três pessoas morrem disso hoje, é uma das causas de morte mais comum hoje. Se você tem um ou dois parentes muito jovens com a doença, essa é uma pista, e aí você deveria falar com seu médico sobre isso, pois você pode ter um risco hereditário.

É recomendado buscar testes genéticos e fazer cirurgias preventivas quando há casos como esses na família?

Acho que é preciso fazer o teste antes, mas você precisa estar convencido do resultado antes de tomar uma grande decisão como fazer uma cirurgia preventiva. Mesmo em casos do BRCA (genes cujas mutações podem causar câncer de mama e ovário), algumas mutações são piores do que outras e algumas não têm um efeito significativo. Se você toma uma decisão sem aconselhamento médico, você pode tomar uma decisão ruim. E para muitos de nós, não haverá esse risco e não seria certo fazer essa intervenção extrema.

No caso da Angelina Jolie, ela vem de uma família com um risco muito grande (a mãe morreu de câncer de ovário e uma tia materna morreu de câncer de mama), tinha uma mutação particular de alto risco. Ela tomou uma decisão corajosa e não há por que dizer que isso foi errado, mas é uma circunstância muito incomum e seria errado as pessoas acharem que estão na mesma situação dela, pois é algo extremamente raro.

Como o senhor avalia o impacto da sua descoberta? Imaginou que seria tão importante?

Não! (risos) Quando eu descobri isso, eu sabia que era algo incrível, e, de fato, o trabalho foi publicado na Nature, uma das publicações mais importantes da área. Nós estávamos trabalhando em uma questão muito clara, uma única proteína que por algum mecanismo poderia fazer uma célula normal agir como uma célula cancerosa. Era um sinal de que algo estava acontecendo, mas eu não imaginava que seria algo tão importante. E isso se tornou minha vida, porque eu a descobri quando era muito jovem, na casa dos vinte anos, e dez anos depois a descoberta se tornou muito importante, e desde então, meus pés nunca voltaram a tocar o chão novamente, estou sempre andando por aí (risos). É muito animador ver os diferentes usos que se pode fazer a partir de uma descoberta, não só por talvez encontrarmos a droga correta para o tratamento a partir disso, mas também por talvez ajudar a detectar a doença precocemente, ter testes mais sensíveis. O senhor parece estar sempre animado, gosta de pesquisar, de viajar e está em contato direto com a área da pesquisa desde a juventude. Que conselhos daria aos cientistas brasileiros que passam por sérias dificuldades, principalmente financeiras, para fazer pesquisas? Como não desanimar?

Você precisa ter paixão pela ciência. Eu realmente acho que você frequentemente pode fazer boa ciência sob circunstâncias que parecem difíceis, porque você pode pensar diferente, pode ter um olhar diferente, sempre há algo especial que você pode fazer. Por exemplo, há estudos importantes aqui que não há em outro lugar do mundo. Você tem de se entusiasmar, tem de estar lendo sobre o que já se conhece, porque ciência é sobre integrar fatos. Eu recomendaria às pessoas jovens que usem a biblioteca, usem a internet. Uma coisa incrível hoje é que muitas publicações científicas são de livre acesso para qualquer pessoa. Você pode assistir a palestras maravilhosas, ler trabalhos incríveis, tudo pela internet. As ideias não surgem se você ficar apenas no seu mundo, então, falar com seus colegas é extremamente importante. Se seus colegas e você estão entusiasmados sobre algo, devem se aprofundar. Mantenha os olhos abertos. A ciência está em todo o lugar e há muito para ser explorado. Talvez você não entenda algo, mas descreva-o cuidadosamente mesmo assim, pois outras pessoas podem se valer da sua descrição. E não queira ser dono do que está descrevendo. A ciência é para todo mundo.

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