Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Amazônia

A guerra da borracha

Soldados da borracha recrutados partiam de Fortaleza para Teresina | Fotos: Aba-Film/Mauc/Acervo Jean Pierre Chabloz
Soldados da borracha recrutados partiam de Fortaleza para Teresina (Foto: Fotos: Aba-Film/Mauc/Acervo Jean Pierre Chabloz)
Durante a

1 de 1

Durante a

Parece estranho pensar que os seringueiros que trabalharam na Amazônia, durante a extração da borracha, tiveram uma missão tão importante como os soldados que participaram das duas Grandes Guerras mundiais. Mas foi o que aconteceu. O alinhamento do Brasil com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, em 1942, transformou a Amazônia em um verdadeiro campo de batalha. Era preciso explorar intensamente o recurso disponível para que o Brasil pudesse fornecer a quantidade de borracha necessária aos americanos, que pulou de 16 quilos por pessoa na Primeira Guerra para 98 na Segunda.

Getúlio Vargas, o presidente da República, lançou até uma campanha: "Mais borracha em menos tempo". A Amazônia era uma região ainda despovoada e de difícil acesso, por isso a solução encontrada foi literalmente recrutar pessoas, nesse caso os nordestinos, para garantir a mão-de-obra necessária. Mais de 30 mil homens atenderam ao pedido de Vargas para contribuir com o esforço de guerra. Esses trabalhadores foram chamados de "soldados da borracha." Em entrevista à Gazeta do Povo, a historiadora María Verónica Secreto de Ferreras explica como foi esse período no Brasil.

Em que momento os seringueiros foram vistos como soldados de guerra?

A documentação oficial, como o contrato de encaminhamento ou o regulamento do Semta (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para Amazônia), se refere ao trabalhador mobilizado. Mas o material de propaganda, como o folheto "Rumo à Amazônia", destinado a motivar trabalhadores para se apresentarem como voluntários, fala em "soldados da borracha". Durante a campanha foram muito utilizadas metáforas bélicas. Entre elas, uma cartilha que dizia: "Soldado da Borracha, herói da Amazônia. Mas não só pelas armas podemos e devemos concorrer para o triunfo completo da liberdade humana. Ao Nordestino, ao nosso trabalhador do campo, cabe uma tarefa tão importante como a do manejo das metralhadoras nas frentes sangrentas de batalha (...) extraindo borracha."

Enquanto os homens iam trabalhar na extração do látex, onde ficavam as mulheres? Elas assumiam a família? Qual era a situação delas?

Os trabalhadores tinham a opção de escolher diferentes formas de assistência a sua família. Um carimbo na margem esquerda do contrato identificava o tipo de proteção pela qual cada trabalhador tinha optado. Poderia ser uma assistência que teria duração no período de vigência do contrato. Os dependentes e mulheres também tinham o direito de ficar sob a responsabilidade do próprio trabalhador: nesse caso, as mulheres e crianças moravam em palhoças rústicas e dormiam em redes. Um conjunto de cartas, atualmente reunidas no Museu de Arte da Universidade do Ceará (Mauc), permite conhecer as condições de vida nesses alojamentos. "Já botaram inquisição por causa do fumo", queixa-se Elcídia Galvão em carta ao marido, dizendo preferir ser "enxotada" a abrir mão do cigarro – pois fumar e chorar eram seus únicos confortos.

Em que contexto histórico mundial aconteceu a guerra da borracha?

O bombardeio japonês a Pearl Harbour, em dezembro de 1941, pôs fim à ambigüidade da política externa do governo de Getúlio Vargas e, de alguma forma, condicionou a política interna a respeito da Amazônia. O ingresso dos Estados Unidos na guerra exigiu uma posição clara das nações americanas. O domínio japonês das ilhas do Pacífico cortou o fornecimento de borracha e, com isso, foi necessário definir a política econômica dos países do continente que passaram a abastecer as nações aliadas com matérias-primas. Em março de 1942, o Brasil assinou, em Washington, uma série de acordos sobre matérias-primas estratégicas, entre as quais a borracha.

Quem eram esses homens que foram participar da campanha de extração da borracha na Amazônia?

O recrutamento de trabalhadores teve sua sede em Fortaleza, já que o "público-alvo" da campanha eram os nordestinos que já tinham uma tradição na migração e povoamento da Amazônia.

Houve muitas mortes?

O número de mortos, como o de recrutados, não é exato. Sabe-se que a campanha, no seu conjunto, foi um desastre. Logo se começou a receber notícias de que milhares de trabalhadores tinham desaparecido. As famílias não tinham notícias deles e os órgãos do Estado não sabiam do paradeiro dos trabalhadores.

Como eram as condições de trabalho e de vida dos seringueiros?

O seringueiro comprometia-se a trabalhar seis dias por semana, quer na época apropriada à extração do látex, quer no período de entressafras. Toda a borracha produzida deveria ser entregue ao seringalista. Da borracha produzida pelo seringueiro, seriam-lhe creditados no mínimo 60% sobre o preço oficial que vigorava nas praças de Manaus e Belém. O seringueiro também teria direito aos animais abatidos e poderia cultivar um hectare de terra, livre de qualquer ônus.

Os acordos de trabalho deram certo?

Foi um contrato "para inglês ver" ou, neste caso, para americano ver. Uma vez que o trabalhador ingressava no seringal, era impossível fiscalizar.

Como a senhora teve acesso às cartas das mulheres dos seringueiros?

Entre os materiais pertencentes ao corpus documental "Regina Frota", depositado no Museu de Arte da Universidade do Ceará, encontramos um conjunto de cartas escritas pelos soldados e por suas esposas. As cartas dos maridos foram enviadas de diferentes pontos da Amazônia e chegaram, mais precisamente, ao destino de Regina Frota, porque estavam endereçadas a ela. Antes de partir, esses maridos tinham combinado de confiar a ela as cartas. Já as cartas das mulheres não chegaram ao destino. Acredita-se que nunca foram enviadas por causa do conteúdo delas. O tom das cartas dá um indício forte sobre os motivos de sua "retenção". Mas também podemos salientar a dificuldade de se conseguir o endereço para enviá-las.

O que foi a CPI da borracha? Qual foi o resultado dela?

Por causa da grave situação criada pela batalha da borracha, o caso foi levado a debate na Assembléia Constituinte. Foi formada uma CPI que trabalhou entre os meses de julho e setembro de 1946, juntando documentos e tomando depoimentos dos funcionários. Os depoimentos deixam transparecer problemas políticos e até pessoais entre os depoentes. Alguns tinham consciência das conseqüências sociais da introdução dos "migrantes nordestinos" nos seringais. Outros depunham que o transporte dos trabalhadores era realizado em condições deploráveis, que se desperdiçava dinheiro e comida jogando ao rio alimentos em mau estado. O relatório da CPI concluía que se impunha com urgência o amparo imediato aos soldados da borracha e às famílias. Os soldados tiveram de brigar durante décadas para receber seus direitos. Somente em 1988 eles começaram a ganhar uma pensão vitalícia.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.