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Cecília Agner, 64 anos, já está à espera, na calçada, com um bilhetinho na mão. O barulho dos carros na Padre Anchieta com a Francisco Rocha quase não deixa ouvir o que ela fala. "Hoerner, Kowalski, Hartmann, Kaviski... É isso que você quer saber, não é?" É. Dentro da casa antiga, de madeira, abaixo do nível da rua – resultado de uma das invasões imobiliárias mais bárbaras de que se tem notícia na capital (aquela que tentou transformar o Bigorrilho em Champagnat) – a conversa entre nos eixos. Ali, com as fotos e os recortes espalhados no sofá, Cecília é mais Haag do que Agner.

Dá para entender porque a senhora de memória afiada se tornou a porta-voz do bairro – entrevistada por crianças das escolas locais a torto e a direito. Seu pai, André Haag, descendente de alemães russos, estava entra os pioneiros que se firmaram na região que – nem por milagre – alguém juraria se tornar um dos metros quadrados mais caros da cidade. O Bigorrilho – nome de pássaro ou de um mendigo que circulava por lá – era o vizinho acidentado, lamacento, e cheio de brejos da belíssima Mercês e do sofisticado Batel. Pois milagres acontecem e o primo pobre enriqueceu.

Antes disso acontecer, André, já entregava cartas na região, era conhecido até dos passarinhos e dos mendigos. Sua filha aprendeu frases inteiras em polonês, de tanto prosear com a vizinhança. Os Haag eram a tradução do lugar famoso pelos calçados que eram deixados no armazém dos Hartmann. Quando se ia para a cidade, tão cheios de barro ou pó estavam, era preciso carregar dois pares. A luz, instalada em meados da década de 40, foi recebida com desconfiança. Falhava e ter lampião guardado era obrigatório.

Lógico – quando se falou enterrar o nome Bigorrilho, mexeu-se com os brios da filha do morador ilustre. "Não se troca nome nem de cachorro, quanto mais de bairro". Na ocasião, a cidade toda viu que era melhor não se meter em assuntos de família. O que inclui o bairro em que se mora. Nem o governador Roberto Requião escapou, morador que é do pedaço. "Bigorrilho ou Champagnat", perguntou à queima-roupa a caminhante Cecília ao quase vizinho, num encontro na calçada. "Bigorrilho", teria respondido ele. Virou notícia.

Mas que nada. Essa briga foi bobagem diante de uma outra, iniciada nos anos 80, quando o assédio das construtoras aos moradores deixou a comunidade em polvorosa. Queriam transformar o jardim florido dos Haag num condomínio. A resposta foi "não e não". "Só me mudo daqui para a Água Verde – no cemitério." O mesmo não aconteceu na vizinhança, esvaziada com a chegada dos arranha-céus. Do portão, na saída, Cecília aponta quem ficou. A listinha do início da visita já não é mais a mesma. Como a paisagem.

Ariel, 69 anos; Alfredo, 47 anos, e João Mauri, 64 anos, o Nenê, são primos, moram próximos e nem é bom que se encontrem mais amiúde. Gastariam horas em recordações. O trio pertence à família Geronasso, um dos casos mais impressionantes da redondeza no quesito "nós e o bairro". No passado, eles têm em comum o patriarca Ludovico Geronasso, que, diferentemente da maioria dos imigrantes pobres do passado, chegou da Itália, no fim do século 19, com dinheiro de sobra na algibeira. Pelo menos dinheiro o bastante para comprar 135 alqueires de terra num ponto estratégico

A "boa vista" que a área dava de Curitiba era o apelo do local. E uma vista que pertencia só aos Geronasso e agregados. Gente da cidade entrava lá para caçar codornas e se retirar em seguida, agradecendo a hospitalidade. Funcionava como uma Colônia Cecília de um sobrenome só. "Quando eu era pequeno, só tinha sete casas aqui", lembra Ariel, sobre o endereço dos filhos de Ludovico. Foi, inclusive, por força desse passado, que desceu o machado numa placa de rua que deveria homenagear um Geronasso, o Abílio, e não o fez. O imbróglio acabou na prefeitura – com ponto para a tradição. O nome da rua foi mudado. "Somos 300 ou 500?", desconversam, enquanto remexem no baú. "Só sabemos que existe uma única família Geronasso no país, mesmo escrito com ‘zz’". E que o endereço dela é na Boa Vista, mesmo quando apenas sentimentalmente.

A ligação é tão forte que os Geronasso parecem montar seus próprios museus domésticos – dos quais fazem parte vizinhos como os Zaminelli, Lambertussi, e Túlio, todos lembrados como parte da grande família. A casa de Ariel tem mapas da antiga fazenda, fotos a granel e ele próprio – um arquivo vivo como Cecília Agner e João Derosso (leia abaixo). Na chácara de Mauri tem alfanjes gastos pendurados na parede, telas retratando a antiga fazenda, barril de carvalho de cem anos no quintal, vinho feito em fevereiro. Além de portõezinhos ligando os quintais divididos com os filhos. Alfredo, mais discreto, poderia fazer a descrição topográfica do Boa Vista – inclusive a Boa Vista anterior aos loteamentos dos anos 50. Mais novo, de ouvir falar, decorou onde era o quê.

Na sua fala, dá para imaginar o Terminal da Boa Vista como sede da fazenda de Ludovico. E os tempos em que uma de suas parentas, Angelina, subia num cavalo branco e saía pela região. Quem a visse montada sabia: era dia de festa para os Geronasso. Hoje, olhando o movimento infernal da rápida – cujo nome é Jovino do Rosário, genro pobre de Ludovico e protagonista de uma bela história de amor nas rebarbas da velha Curitiba – dá uma ponta de inveja. Atravessá-la sabendo que foi palco de uma novela dessas faz levar o pé ao freio. E nem é preciso redutor de velocidade.

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