A Rua Daysi Berno, no Parolin, se transformou num canteiro de obras da noite para o dia. Tem vizinho pintando muro e gente comprando caixa de correio para enfeitar a fachada. Dos tempos em que a rua era um dos 29 becos da mais famosa favela de Curitiba, resta apenas uma árvore solitária, mantida a salvo bem no meio do asfalto, feito um monumento em memória da penúria. "Mal dá para acreditar que esse cedro estava no quintal de uma das casas", comenta o presidente da Associação de Moradores do Parolin e Amigos da Vila Guaíra, Édson Pereira, 36 anos.
"Mal dá para acreditar", aliás, é a frase que mais se ouve pelas bandas do Parolin nos últimos meses. Depois de quase seis décadas de espera, a vila de 240 mil metros quadrados está prestes a sair da ilegalidade. Com quase 1,5 mil terrenos em situação irregular, a região acaba de se beneficiar da soma de verbas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e de investimentos da prefeitura municipal. A verba vai ser utilizada para a construção de 830 casas de 45 metros quadrados, regularização fundiária e pavimentação. Apenas quatro dos 29 becos continuarão sem saída, praticamente sepultando a paisagem que fez do Parolin uma espécie de esconderijo sob medida para criminosos. Além da desfavelização, anuncia-se aos quatro ventos a despoluição do Guaíra, um rio tão fétido que em tempos idos era chamado pelo apelido, Valetão.
Fosse apenas o Parolin a virar a página, já seria uma boa notícia. Mas a prosa vai mais longe. A parceria da União com a prefeitura deve beneficiar, ao todo, 36 ocupações irregulares, ou favelas, de Curitiba, sendo 15 delas com recursos do PAC e 21 financiadas por verba do governo federal com retaguarda do município. O investimento é de R$ 177,5 milhões, atingindo 8.150 famílias aproximadamente 32 mil pessoas. Sem falar nos rios. Além do Guaíra, o anúncio é de que águas limpas vão rolar nos rios Formosa e Belém, graças à realocação de 4 mil famílias que vivem às suas margens.
A parcela de agraciados pode parecer pequena perto da soma de 254 ocupações irregulares de toda a cidade, onde moram cerca de 200 mil pessoas. Mas diante do balaio de gatos que representa cada uma dessas ocupações, o assunto muda de rumo. Favelas são uma soma de problemas multiplicados por três. A regularização exige acerto com os proprietários o que não costuma ser uma amistosa conversa de muro. No Parolin, por exemplo, a família que deu origem ao bairro ainda é proprietária de 50% da área da vila. Há também a gama de infortúnios que forma uma área degradada dos barracos em petição de miséria a dramas sociais que incluem desemprego, violência, evasão escolar e baixa-estima. Exatamente a baixa-estima. Por essas e outras, a imagem de tanta gente pintando muro e pondo vaso de planta na calçada é sinal de que bons ventos batem no Planeta Favela.
Atropelo
As mudanças custaram a chegar. Agora, atropelam, deixando pouco tempo para processar a onda do PAC. Inclusive para a prefeitura, que tem até terça-feira, dia 30 de outubro, para concluir todos os estudos sobre as áreas beneficiadas. Em 170 dias de trabalho já contabilizados, a Companhia de Habitação (Cohab) de Curitiba colocou cerca de 30 recenseadores nas 36 vilas selecionadas, dentre as 98 que o órgão municipal atende diretamente o equivalente a 40% da área favelizada da cidade. Depois que uma equipe confere o mapeamento prévio da PMC já que ocupações tendem a crescer e a se multiplicar a outra passa de porta em porta com questionário de 18 páginas.
Cada família leva 40 minutos para responder. Muitos endereços exigem retorno do pesquisador, para garantir que pelo menos 80% de cada ocupação vai ser avaliada. Os 20% restantes pertencem ao campo minado chamado mercado informal de aluguéis de barracos. "Os moradores entenderam que se essas lacunas não forem resolvidas o projeto fica comprometido", avalia a assistente social Kelly Mengarda Vasco, coordenadora do censo da Cohab.
O resultado do levantamento é tão surpreendente quanto ver uma rua cheia de barracos como a Daysi Berno virar cenário de um passeio de domingo. Mesmo que feito de afogadilho, o programa levantou informações capazes de reinventar as políticas públicas. O questionário apura, por exemplo, a quantidade de adolescentes grávidas, de idosos, deficientes, condições sanitárias, quantas pessoas dividem cada dormitório e até falta de documentos.
Claro não vai ser um passe de mágica. "A Vila Parolin não há de ficar linda da noite para o dia", brinca o líder Édson. O que difere este programa de tantos outros que escreveram a não propriamente bem-sucedida história da habitação popular no Brasil é que está todo mundo escaldado. Além do pré-histórico Parolin, há favelas com 20 ou 30 anos de espera por regularização. A Vila Uberlândia, por exemplo, já existia na década de 60. Há medo de repetir as desastrosas interferências da Cohab no passado, cujas ações civilizatórias incluíam despejar moradores em rincões tão distantes que a maioria se tornou protótipos da Cidade de Deus, a famosa favela carioca que inspirou livro homônimo de Paulo Lins e o filme de Fernando Meirelles.
O presidente da Cohab, Mounir Chaowiche, acredita que desse mal o projeto está livre. Depois de tantos desacertos, o setor de habitação teria se imunizado contra ações autoritárias. Dessa vez, a companhia está agindo em parceria com outros órgãos da prefeitura, como a Ação Social, a Educação, e fez acertos com a Sanepar firmando acordo para pôr fim às ligações sanitárias clandestinas. "O plano não está preocupado em dar casa de 40 metros quadrados, achando que isso resolve o problema. Hoje, entende-se que a habitação tem de ser tratada como resgate da cidadania", diz Mounir.
Noves fora, um dos grandes trunfos do programa foi ter conseguido sentar e conversar com as comunidades. Desse esforço surgiu o compromisso de que os próprios moradores vão monitorar a chegada de novas famílias, conscientizando-as de que o mapeamento já está concluído. "O pessoal das vilas vê a urbanização com bons olhos porque sabe que ela vai reduzir a criminalidade. Ninguém quer ficar a vida inteira numa área de risco", acrescenta Chaowiche.
Ele tem razão. Nas quatro vilas visitadas pela reportagem Parolin, Nina, Ebenezer e Ulisses Guimarães os moradores falam com euforia da experiência de sair da ilegalidade, livrando-se do risco de despejo e da saia-justa que é mentir o endereço para o patrão e para o crediário. Mas poucos acreditam na capacidade do programa de conter novas invasões. Congelar áreas é missão impossível. Desde o recenseamento, só o Parolin já teria recebido mais 70 famílias, esperançosas de incluir o nome na lista da Cohab. O mundo dos sem-teto, em miúdos, não cabe inteiro no questionário dos recenseadores. A diferença é que agora se sabe disso melhor do que nunca.
Viagem de volta ao rio chamado Formosa
O garoto Eduardo Martineli Silva, de apenas 4 anos, vai ser um dos poucos a ter saudade da atual Vila Nina, uma das 36 áreas beneficiadas pelo projeto de desfavelização da Cohab. Em companhia da mãe, a líder comunitária Elizângela Martineli, 30 anos, ele liderou uma pequena expedição da reportagem pelo local que, há 15 anos, era uma chácara do bairro Fazendinha.
Edu brincou de pescador faz-de-conta numa nascente do Rio Formosa, subiu o barranco poeirento que separa a Vila Nina da Vila Estrela a ocupação vizinha que não foi beneficiada pelo PAC; mostrou a horta comunitária, instalada em baixo das torres de alta-tensão da Copel e serviu de guia pelo beco onde moram pelo menos 12 famílias.
O cenário da Vila Nina é incrível para o menino uma das 74 crianças da área , mas também para quem nunca circulou por ali. Tirando os dois "portais secretos" uma ruela rente a um muro e uma estradinha de chão que corta a Rua Francisco Novartoski mal pode imaginar a existência da vila. A Nina se esconde. Mesmo assim, o terreno acidentado, de 24 mil metros quadrados, metade deles na área dos fios de luz, abriga 77 famílias em terrenos de 8,20 x 8,20 metros.
Para a liderança da vila, a inclusão no programa do governo federal foi uma surpresa, porque a ocupação não é tão antiga e por colecionar corridões da prefeitura. "A gente vivia ouvindo que não podíamos reivindicar nada, porque estávamos em terra alheia. Agora, finalmente, a gente vai existir", diz Elizângela, enquanto lista cada pequena vitória da comunidade: o relógio de luz, a caçamba para detritos e a adesão dos proprietários do terreno à proposta de aquisição. "Cansamos de ter endereço único, na Rua Aristides Busato, onde todo mundo manda entregar compras", brinca a líder, sobre uma prática comum nas favelas: usar uma casa regularizada como fachada para não sofrer discriminação de empregadores e comerciantes.



