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Imigrantes

Como no Parolin, a Vila Nina já enfrenta superpopulação. Acanhada, a comunidade assiste à chegada do que chama de "imigrantes" – familiares dos moradores atraídos pela regularização. As contas, inclusive, não fecham. Com a retirada de quem mora na beira do olho d’água, ficam faltando dez terrenos, fora os reivindicados pelos recém-chegados. "Temos perguntas sem resposta", admite o presidente da Associação dos Moradores da Vila Nina, José Aparecido Prates, 32 anos.

No Moradias Ebenezer, no Novo Mundo, a dúvida sobre "como é que fica" também impera – a vila não foi incluída no PAC. Trata-se de uma comunidade atípica, nascida numa área de massa falida – um banhadão às margens da Rua Pedro Gusso, na Rua Olga de Araújo Espíndola. E de um único lado da rua. Do outro, a ocupação se chama Yvone Pimentel, e não adianta tentar puxar assunto a respeito. Os vizinhos não andam de conversa. A resposta é que não se sabe muito sobre a situação de quem mora na frente. Até porque o pessoal do Ebenezer – 152 famílias – tem mais com o que se preocupar, como informa o líder comunitário José Carlos Bonifácio, 43 anos.

O primeiro problema é quantas famílias terão de ser realocadas com a abertura da Rua Olga, hoje um beco. O segundo é quantos metros de recuo o Rio Formosa, que passa no fundo da ocupação, vai exigir, quando a regularização chegar. Seja cinco ou três metros, para reflorestar as margens, as casas vão diminuir. É o caso da moradia de Aparecida, 59 anos, e Waldomiro Brito, 54 anos. O "Formosinha", como chamam, passa praticamente dentro da moradia. Uma ponte que balança permite ao casal lidar no quintal. Os dois fazem as contas do que vai lhes restar de terreno, mas mesmo assim acham que vale o sacrifício.

"Vivi minha vida inteira de favor na casa dos outros", diz Aparecida, que há sete anos se estabeleceu no Novo Mundo. Mesmo que seja uma casinha pequenina, sonha, vai ser de alvenaria, e no seu nome. Se o rio for mesmo despoluído – informação recebida com rabo de olho – são outros 500. "O que importa é que o Novo Mundo vai ser um bairro nobre", festeja o líder José Carlos, antes de pedir licença para lidar com o cimento. Assim como o Parolin, o Ebenezer, à espera do PAC que não veio, virou um grande mutirão.

Espera

Mas a procissão de tijolos e sacos de cimento não é regra nesses dias de revolução na periferia. Entre as 500 famílias que moram na ocupação Ulisses Guimarães, no Pinheirinho, o compasso ainda é de espera. A área fica quase toda num fundo de vale e uma parcela significativa dos moradores terá de ser realocada em outra área. Casas como a da dona de casa e líder comunitária Rosângela dos Santos, 40 anos, serão reduzidas à metade.

Rosângela mora numa residência de madeira que em nada lembra uma invasão. Tudo é muito organizado e espaçoso. "A favela é a gente que faz", diz a líder, cuja maior marca é dirigir sua ação para um grupo de 103 meninos e meninas da comunidade. Ela se diz conformada com o que as mudanças vão exigir dela – viver em 45 metros quadrados: não suporta mais o preço de viver numa ocupação. "Você imagina o que é alugar uma piscina de bolinhas para o Dia das Crianças e dar como endereço a favela? Não dá para viver sendo olhado dessa maneira."

De acordo com a Cohab, famílias realocadas não vão ficar mais do que cinco quilômetros distantes do antigo bairro. A questão é tratada com respeito: experiências do gênero no passado viraram solenes fracassos

Infra-estrutura – Em 93,13% dos domicílios da Vila Parolin existem instalações sanitárias, mas apenas 70,7% são adequadas. No restante, vigora a velha "casinha". Metade dos 1.507 domicílios da região conta com energia elétrica clandestina. Apenas 21% dos moradores têm rede de esgoto – o que faz com que 79% dos dejetos sejam drenados para águas pluviais ou lançados a céu aberto. A cena é comum. No Bolsão Formosa, idem. A área de 127 mil metros quadrados apresenta declive em relação ao rio e esgoto em apenas 30% dos 836 domicílios.

Faixa etária – O Parolin é jovem: 18% dos moradores têm de 0 a 6 anos; 19% de 7 a 13; mas apenas 8,2% entre 14 e 17 anos. A maior faixa etária é de 18 a 30 anos – com 22% da população. Na Vila Formosa, a parcela jovem também é grande: 23,5% da população tem entre 18 e 30 anos, com declive da faixa entre 12 e 17anos, o equivalente a 11,7% do total. Há ocupações mais "maduras", como a Vila Uberlândia – com 40% da população na faixa dos 18 aos 40 anos. E muito jovens, como a Vila Nova, com 46,6% da população formada por crianças e adolescentes.

Maternidade – Na Vila Formosa, 76,4% das grávidas estão na faixa dos 18 aos 30 anos. Há 11,7% de gravidez adolescente. Na Vila Leão as adolescentes são 42,8% das gestantes e 31,3% da Vila Audi União. Um dado interessante é que nas vilas do Bolsão Formosa – da qual a Vila Leão faz parte – as famílias não são numerosas, tendo em média quatro pessoas por domicílio.

Escolaridade – No Parolin, os dados são preocupantes: apenas 30,6% da comunidade freqüenta a escola. Entre os que não estudam, 36,3% concluíram apenas a primeira etapa do ensino fundamental. A comunidade tem 464 analfabetos. O índice melhora um pouco na Vila Formosa – onde 36,5% da população ainda vai à escola – mas não deixa de ser dramático, principalmente por causa da evasão escolar: recenseadores identificaram 137 crianças fora do sistema de educação infantil. A Vila São José – com 348 domicílios – apresenta 68,4% da população fora do sistema escolar.

Renda – A maior parte da população da Vila Parolin recebe entre R$ 200 e R$ 400 mensais (42,1% do total). O rendimento máximo, para 4,1% da população, é de R$ 1 mil. Pesquisa detectou 105 famílias que declararam não possuir renda. Na Vila Formosa, 48% da população maior de 18 anos está desempregada ou empregada sem proteção trabalhista e previdenciária.

Realocamentos – O projeto da Cohab-CT vai remanejar famílias que vivem na beira dos rios. O número varia de bolsão para bolsão. No Formosa, 180 famílias vão para o loteamento Moradias Ferrovila/Minas Gerais – na Vila Guairá –; 514 para o Moradias Arroio – na CIC – e 43 para a Vila Nina. As vilas 23 de Agosto, Campo Cerrado, Gramados e Cristo Rei serão totalmente reassentadas em cinco loteamentos, originando Assaí, Jandaia, Castanheiras, Pinhão e Sítio Cercado VI, somando 648 unidades habitacionais.

Cerca de 30 recenseadores da Cohab-CT estão percorrendo, de casa em casa, as 36 vilas que vão receber a verba do governo federal. Esse universo – desvendado em 170 dias pelos recenseadores – representa 40% da área favelizada de Curitiba.

Revolução da casa passa pelo piso e pelo teto

"Agora eu ganhei uma janela para a rua", festeja Perceliana Maria de Oliveira, 43 anos, moradora do Parolin desde que nasceu. Ela acompanha a construção de sua primeira casa de alvenaria, onde vai morar com três filhas e uma neta. A moradia, de 45 metros quadrados, tem dois quartos, sala e cozinha geminada e banheiro. O quintal é minúsculo.

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A Rua Daysi Berno, no Parolin, se transformou num canteiro de obras da noite para o dia. Tem vizinho pintando muro e gente comprando caixa de correio para enfeitar a fachada. Dos tempos em que a rua era um dos 29 becos da mais famosa favela de Curitiba, resta apenas uma árvore solitária, mantida a salvo bem no meio do asfalto, feito um monumento em memória da penúria. "Mal dá para acreditar que esse cedro estava no quintal de uma das casas", comenta o presidente da Associação de Moradores do Parolin e Amigos da Vila Guaíra, Édson Pereira, 36 anos.

"Mal dá para acreditar", aliás, é a frase que mais se ouve pelas bandas do Parolin nos últimos meses. Depois de quase seis décadas de espera, a vila de 240 mil metros quadrados está prestes a sair da ilegalidade. Com quase 1,5 mil terrenos em situação irregular, a região acaba de se beneficiar da soma de verbas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e de investimentos da prefeitura municipal. A verba vai ser utilizada para a construção de 830 casas de 45 metros quadrados, regularização fundiária e pavimentação. Apenas quatro dos 29 becos continuarão sem saída, praticamente sepultando a paisagem que fez do Parolin uma espécie de esconderijo sob medida para criminosos. Além da desfavelização, anuncia-se aos quatro ventos a despoluição do Guaíra, um rio tão fétido que em tempos idos era chamado pelo apelido, Valetão.

Fosse apenas o Parolin a virar a página, já seria uma boa notícia. Mas a prosa vai mais longe. A parceria da União com a prefeitura deve beneficiar, ao todo, 36 ocupações irregulares, ou favelas, de Curitiba, sendo 15 delas com recursos do PAC e 21 financiadas por verba do governo federal com retaguarda do município. O investimento é de R$ 177,5 milhões, atingindo 8.150 famílias – aproximadamente 32 mil pessoas. Sem falar nos rios. Além do Guaíra, o anúncio é de que águas limpas vão rolar nos rios Formosa e Belém, graças à realocação de 4 mil famílias que vivem às suas margens.

A parcela de agraciados pode parecer pequena perto da soma de 254 ocupações irregulares de toda a cidade, onde moram cerca de 200 mil pessoas. Mas diante do balaio de gatos que representa cada uma dessas ocupações, o assunto muda de rumo. Favelas são uma soma de problemas multiplicados por três. A regularização exige acerto com os proprietários – o que não costuma ser uma amistosa conversa de muro. No Parolin, por exemplo, a família que deu origem ao bairro ainda é proprietária de 50% da área da vila. Há também a gama de infortúnios que forma uma área degradada – dos barracos em petição de miséria a dramas sociais que incluem desemprego, violência, evasão escolar e baixa-estima. Exatamente – a baixa-estima. Por essas e outras, a imagem de tanta gente pintando muro e pondo vaso de planta na calçada é sinal de que bons ventos batem no Planeta Favela.

Atropelo

As mudanças custaram a chegar. Agora, atropelam, deixando pouco tempo para processar a onda do PAC. Inclusive para a prefeitura, que tem até terça-feira, dia 30 de outubro, para concluir todos os estudos sobre as áreas beneficiadas. Em 170 dias de trabalho já contabilizados, a Companhia de Habitação (Cohab) de Curitiba colocou cerca de 30 recenseadores nas 36 vilas selecionadas, dentre as 98 que o órgão municipal atende diretamente – o equivalente a 40% da área favelizada da cidade. Depois que uma equipe confere o mapeamento prévio da PMC – já que ocupações tendem a crescer e a se multiplicar – a outra passa de porta em porta com questionário de 18 páginas.

Cada família leva 40 minutos para responder. Muitos endereços exigem retorno do pesquisador, para garantir que pelo menos 80% de cada ocupação vai ser avaliada. Os 20% restantes pertencem ao campo minado chamado mercado informal de aluguéis de barracos. "Os moradores entenderam que se essas lacunas não forem resolvidas o projeto fica comprometido", avalia a assistente social Kelly Mengarda Vasco, coordenadora do censo da Cohab.

O resultado do levantamento é tão surpreendente quanto ver uma rua cheia de barracos como a Daysi Berno virar cenário de um passeio de domingo. Mesmo que feito de afogadilho, o programa levantou informações capazes de reinventar as políticas públicas. O questionário apura, por exemplo, a quantidade de adolescentes grávidas, de idosos, deficientes, condições sanitárias, quantas pessoas dividem cada dormitório e até falta de documentos.

Claro – não vai ser um passe de mágica. "A Vila Parolin não há de ficar linda da noite para o dia", brinca o líder Édson. O que difere este programa de tantos outros que escreveram a não propriamente bem-sucedida história da habitação popular no Brasil é que está todo mundo escaldado. Além do pré-histórico Parolin, há favelas com 20 ou 30 anos de espera por regularização. A Vila Uberlândia, por exemplo, já existia na década de 60. Há medo de repetir as desastrosas interferências da Cohab no passado, cujas ações civilizatórias incluíam despejar moradores em rincões tão distantes que a maioria se tornou protótipos da Cidade de Deus, a famosa favela carioca que inspirou livro homônimo de Paulo Lins e o filme de Fernando Meirelles.

O presidente da Cohab, Mounir Chaowiche, acredita que desse mal o projeto está livre. Depois de tantos desacertos, o setor de habitação teria se imunizado contra ações autoritárias. Dessa vez, a companhia está agindo em parceria com outros órgãos da prefeitura, como a Ação Social, a Educação, e fez acertos com a Sanepar – firmando acordo para pôr fim às ligações sanitárias clandestinas. "O plano não está preocupado em dar casa de 40 metros quadrados, achando que isso resolve o problema. Hoje, entende-se que a habitação tem de ser tratada como resgate da cidadania", diz Mounir.

Noves fora, um dos grandes trunfos do programa foi ter conseguido sentar e conversar com as comunidades. Desse esforço surgiu o compromisso de que os próprios moradores vão monitorar a chegada de novas famílias, conscientizando-as de que o mapeamento já está concluído. "O pessoal das vilas vê a urbanização com bons olhos porque sabe que ela vai reduzir a criminalidade. Ninguém quer ficar a vida inteira numa área de risco", acrescenta Chaowiche.

Ele tem razão. Nas quatro vilas visitadas pela reportagem – Parolin, Nina, Ebenezer e Ulisses Guimarães – os moradores falam com euforia da experiência de sair da ilegalidade, livrando-se do risco de despejo e da saia-justa que é mentir o endereço para o patrão e para o crediário. Mas poucos acreditam na capacidade do programa de conter novas invasões. Congelar áreas é missão impossível. Desde o recenseamento, só o Parolin já teria recebido mais 70 famílias, esperançosas de incluir o nome na lista da Cohab. O mundo dos sem-teto, em miúdos, não cabe inteiro no questionário dos recenseadores. A diferença é que agora se sabe disso melhor do que nunca.

Viagem de volta ao rio chamado Formosa

O garoto Eduardo Martineli Silva, de apenas 4 anos, vai ser um dos poucos a ter saudade da atual Vila Nina, uma das 36 áreas beneficiadas pelo projeto de desfavelização da Cohab. Em companhia da mãe, a líder comunitária Elizângela Martineli, 30 anos, ele liderou uma pequena expedição da reportagem pelo local que, há 15 anos, era uma chácara do bairro Fazendinha.

Edu brincou de pescador faz-de-conta numa nascente do Rio Formosa, subiu o barranco poeirento que separa a Vila Nina da Vila Estrela – a ocupação vizinha que não foi beneficiada pelo PAC; mostrou a horta comunitária, instalada em baixo das torres de alta-tensão da Copel e serviu de guia pelo beco onde moram pelo menos 12 famílias.

O cenário da Vila Nina é incrível para o menino – uma das 74 crianças da área –, mas também para quem nunca circulou por ali. Tirando os dois "portais secretos" – uma ruela rente a um muro e uma estradinha de chão que corta a Rua Francisco Novartoski – mal pode imaginar a existência da vila. A Nina se esconde. Mesmo assim, o terreno acidentado, de 24 mil metros quadrados, metade deles na área dos fios de luz, abriga 77 famílias em terrenos de 8,20 x 8,20 metros.

Para a liderança da vila, a inclusão no programa do governo federal foi uma surpresa, porque a ocupação não é tão antiga e por colecionar corridões da prefeitura. "A gente vivia ouvindo que não podíamos reivindicar nada, porque estávamos em terra alheia. Agora, finalmente, a gente vai existir", diz Elizângela, enquanto lista cada pequena vitória da comunidade: o relógio de luz, a caçamba para detritos e a adesão dos proprietários do terreno à proposta de aquisição. "Cansamos de ter endereço único, na Rua Aristides Busato, onde todo mundo manda entregar compras", brinca a líder, sobre uma prática comum nas favelas: usar uma casa regularizada como fachada para não sofrer discriminação de empregadores e comerciantes.

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