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Trabalho

Cobradores têm de pagar por dinheiro levado em assalto

Desconto mascarado na folha como “adiantamento extra” revela prática questionável

Os cobradores de ônibus de Curitiba e região metropolitana estão sendo submetidos a uma prática que os têm deixado bastante incomodados – e com o salário menor no fim do mês. João Soares foi assaltado quando voltava para a garagem da empresa com o dinheiro recolhido no trabalho e, além de ter tido uma arma apontada contra si, ainda teve de pagar à empresa o dinheiro levado pelos assaltantes.

Adolfo Silva estava numa estação-tubo quando o ladrão pediu para que passasse o dinheiro, também ressarcido à empresa. O desconto vem mascarado na folha de pagamento como "adiantamento extra".

Os dois cobradores serão identificados nesta reportagem com nomes fictícios, para evitar represália, mas a história deles expressa a realidade de muitos colegas de profissão. Os R$ 1.755 levados de Soares foram integralmente descontados em 15 parcelas de R$ 117 no pagamento do cobrador, que recebe piso salarial de R$ 590 mensais. De Adolfo, o assaltante levou R$ 480. Em um segundo assalto já haviam levado R$ 83, mas ele devolveu só R$ 56 porque a empresa descontou o valor de 27 passagens, quantidade de dinheiro com a qual os cobradores teriam de trabalhar para fazer o troco. O restante deve ficar no cofre.

Após a queixa dos cobradores, a reportagem percorreu diversas estações-tubo e algumas linhas de ônibus para comprovar o desconto na folha de pagamento. Todos os entrevistados confirmaram que precisam pagar os assaltos que excedem 27 passagens. A prática do desconto ficou evidente após a análise de um boletim de ocorrência (BO) aberto pelos cobradores na Delegacia de Furtos e Roubos. No BO consta o valor roubado e, em seguida, essa mesma quantia aparece descontada nos meses seguintes nos holerites dos entrevistados. Ora o desconto é à vista, ora vem parcelado.

Segundo o presidente do Sindicato dos Motoristas e Cobradores nas Empresas de Transporte de Passageiros de Curitiba e Região Metropolitana (Sindimoc), Denílson Pires, consta na convenção coletiva da categoria que os cobradores terão o valor do assalto descontado na folha se o montante ultrapassar 27 passagens. "Isso ficou estabelecido para a própria segurança dos cobradores. Eles têm um cofre onde devem depositar todo o dinheiro que ultrapassa o valor das 27 passagens. Se não o fizerem, acabam atraindo os assaltantes", explica. Mas grande parte prefere trabalhar com o cofre aberto.

"Eu tive o desconto na folha porque estava com o cofre aberto, e vou continuar fazendo isso porque não quero morrer. Um amigo foi baleado porque não quis abrir o cofre. Lá dentro tinha apenas R$ 20", relata Adolfo. Já Soares teve de pagar o assalto porque voltava para a garagem da empresa para entregar as passagens, mas foi abordado antes. "Peguei uma carona com um motorista da empresa. Ele desviou a rota para comprar leite e nesse momento uma pessoa apontou o revolver e levou tudo", conta.

Cada caso é analisado individualmente, diz o presidente do Sindimoc. Mas se o cobrador trabalhar com o cofre aberto ou desviar a rota para a garagem, terá o valor do assalto descontado. Porém, a questão não é tão simples. Nas estações-tubo onde o movimento é mais intenso, torna-se inviável trabalhar só com o troco de 27 passagens. Por isso o Sindimoc estuda aumentar esse limite. "Agora, se o cobrador é assaltado no trajeto até a garagem, sem desviar o caminho, não pode ser penalizado pelo roubo. Isso também vale para quem está abrindo o cofre na troca de turno. Ninguém deve pagar por uma fatalidade", afirma.

Contudo, entre provar que não teve culpa no roubo e ter o dinheiro descontado no salário, o cobrador provavelmente será enquadrado no segundo caso. Para comprovar a inocência, precisa entrar como uma ação judicial ou procurar o Ministério Público. Até que se prove o contrário, paga pelo assalto. No entanto, a prática do desconto na folha de pagamento é considerada abusiva no meio jurídico. Consta na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que é a empresa que deve assumir os riscos da atividade econômica que desenvolve e, assim, o empregado nunca deve arcar com os prejuízos.

O tema é questionável mesmo que na convenção coletiva da categoria esteja estipulada a quantia de passagens com a qual o cobrador deve trabalhar. "A empresa não pode colocar a norma das 27 passagens e apenas exigir que os cobradores a cumpram. Essas empresas estão dando condições para que isso ocorra? Existe um cofre seguro? Há o recolhimento periódico de grandes quantias de dinheiro nas estações-tubo?", questiona o advogado especialista em Direito do Trabalho José Affonso Dallegrave Neto. Para ele, outro ponto incoerente é o fato de o cobrador ser o responsável por levar o montante das passagens recebidas no turno para a garagem da empresa.

"Caberia ao sindicato estipular qual o valor máximo que os cobradores deveriam se responsabilizar e, para isso, também deveria existir um adicional de periculosidade, como uma compensação salarial, pelo fato desses profissionais desempenharem uma função perigosa. Mas na prática, muitas vezes isso não ocorre", diz.

* Começa hoje na capital o 2.° Fórum Transporte Curitiba. Entre os assuntos, modelos de concessão pública, mobilidade urbana e meio ambiente, carga tributária e gratuidade de tarifas, planejamento de gestão do transporte, remuneração de custos e gestão do transporte metropolitano. Amanhã terá palestra com o ex-ministro Delfim Netto e debate entre os juristas Romeu Bacellar Filho e Marçal Justen Filho.

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