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 | Ilustração: Benett
| Foto: Ilustração: Benett

Há muitos anos, li um texto de Millôr Fernandes em que ele propunha "fins sem piada". Isto é, ele apresentava o fim, e caberia ao leitor imaginar uma piada que lhe desse sentido. Por exemplo – e isso invento agora, porque minha memória RAM se esfarelou –, Manuel vira-se para o amigo e diz: "Até aqui eu entendi; mas o que faço com o baú do Joaquim?". Ou então: "Eu aceito o acordo, disse o papagaio ao velhinho. Mas agora quem abre a porta é você". Nas mãos de Millôr, é claro, a ideia tinha graça. Mais humildemente, pensei num banco de inícios de romances, esses pacotes completos de 300 páginas com começo, meio e fim. O leitor aqui precisaria apenas prosseguir. É mais ou menos assim que eu escrevo romances – começa com uma ou duas frases, que vou tocando adiante.

Eis um exemplo: "A vida de Madame Leclerc era um arco-íris de felicidade. Nada, nunca, conseguia abalar seu exuberante bom humor, exceto nos raros momentos em que errava a dessalga do bacalhau, quando então todo o seu bem cuidado mundo entrava numa perigosa rota de desequilíbrio. A primeira vez em que isso aconteceu – aqueles fiapos grudentos de peixe lembrando fibras de algodão – rendeu-lhe um divórcio, após um constrangedor Boletim de Ocorrência; na segunda, um homicídio mal-explicado por afogamento, quando a terceira nora correu atrás de água, após a primeira garfada".

Não, o exemplo não está bom; conta demais já no primeiro parágrafo. É um começo que praticamente dispensa o que vem depois. É preciso apenas jogar um pouco de alpiste para o leitor arisco, somente atiçar seu apetite, o que não é simples; fazê-lo passar ao segundo parágrafo é tarefa ingrata, muito difícil. A internet sabe disso – observem como as notícias de portais quase nunca têm segundo parágrafo. Terminado o primeiro, já lançam um gancho colorido para o pardal digital ciscar em outra página, e dali adiante, num jogo sem fim.

Vai outra tentativa de segurar o leitor de cara: "A menina ergueu-se com dificuldade na pontinha dos pés roliços e alcançou o frasco de arsênico na terceira prateleira do laboratório, escondendo-o na bolsinha com orelhas de Mickey.

‘Quero ver agora alguém me chamar de gorda’".

O início e o provável fim deste começo são meio óbvios, reconheço (Ela vai envenenar o bandejão do internato? Ela vai se matar?), mas isso, bem dosado, distrai e funciona. O importante é nunca esgotar totalmente o potencial da primeira frase, o que seria o enterro da história. Sabendo disso, alguns escritores só escrevem miolos, por assim dizer – nem começo, nem fim; apenas o osso que importa. O que dá mais trabalho ainda, a lapidação do diamante.

Melhor eu pensar apenas na crônica que tenho diante de mim: um breve começo apenas, e eu sigo em frente, com a honesta simplicidade do trabalhador braçal. Por exemplo: "Há muitos anos, li um texto de Millôr Fernandes em que ele propunha ‘fins sem piada’".

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