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Temos o bom costume de fazer grandes reclamações na vida, que são os resmungos épicos da existência, em todas as esferas – contra os presidentes da República, contra o desconcerto das nações, contra a canalha do Congresso, contra o buraco na camada de ozônio e o aniquilamento das focas, contra a miséria global e contra a desigualdade, contra o sistema de castas da Índia e a mutilação de mulheres na África; às vezes, sob injustiças metafísicas, contra Deus e contra o destino, contra a curta vida que nos cabe, contra a pena de morte, contra essa massa amorfa de eventos, culpas e crimes que nos arrastam feito poeira nesta Terra.

Mas a vida cotidiana é feita de pequenas reclamações, as que realmente ocupam nosso tempo, dão ou tiram sentido das coisas, e que têm o dom profundo da sinceridade. São pequenas, miseráveis, mesquinhas, mas, ao contrário dos tsunamis no outro lado do mundo, que nos fazem sofrer pela televisão, essas reclamações miúdas irrompem furiosas do fundo da alma. São ridículas, mas têm o dom da verdade. Por exemplo, a etiqueta da roupa recém-comprada que fica raspando na pele, na cintura, no pescoço, até que peguemos a tesoura e, irritados, arranquemos aquela tirazinha de pano que parece alumínio. E, é claro, um gesto em falso e lá se vai a blusa, a calça, com o furo imprevisto da ponta da tesoura. Ou o plástico que protege o cedê do Dave Brubeck Quartet que você descobriu num balaio de ofertas, e que, por mais que tentem, nossos dez dedos bem cuidados e criados pela evolução de homo sapiens ao longo de milhões de anos são incapazes de abrir. Até que você racha a unha na tentativa, ou deixa cair a peça num gesto brusco – e a caixinha quebra. O resto da vida aquele cedê capenga na prateleira, que não fecha na embalagem.

Os engenheiros são capazes de desenhar uma Ferrari, mas ainda não acertaram o bico da garrafa térmica, que, é claro, sempre erra a boca da xicrinha. A qual, banhada no pires, ao subir aos lábios deixa um fio minimalista de café de alto a baixo na camisa branquinha que você acabou de vestir. Não é tudo: você não percebe e sai à rua, feliz com o sol de Curitiba. Há momentos metafísicos de angústia quando o texto que você terminou de escrever se perde numa queda de luz, um segundo antes de salvo; ou o e-mail que segue ao destinatário errado, falando (mal) justamente dele. Soube de quem deixou cair o celular no vaso sanitário; e eu mesmo, afobado, já tentei atravessar correndo uma porta de vidro. Erguer-se súbito e acertar a cabeça na quina de uma portinha aberta, ou imaginar distraído que a travessa do forno está fria – é uma conspiração de detalhes que nos rondam, o peso medonho da insignificância, o inferno das miudezas. O mundo inteiro tem solução – exceto a topada na pedra solta, à espreita na calçada da esquina.

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