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Na semana passada aconteceu um dos mais importantes momentos da história brasileira recente: por iniciativa da presidente Dilma Rousseff, deu-se partida à Comissão da Verdade, criada para investigar crimes de Estado cometidos entre 1946 e 1988, data em que se promulgou a atual Constituição. O grande foco será, naturalmente, o período da ditadura militar instaurada em 1964 e reforçada em 1968, quando o Estado brasileiro se transformou, em boa parte, num delinquente inimputável. Mas há ainda quem evoque o clássico "espírito de conciliação", que sempre se desenhou como um traço cultural brasileiro, para escapar do enfrentamento e da superação de nossos problemas. Não se trata agora de revogar a anistia, mas apenas de revelar uma história cinza em que o país continua arrastando seus fantasmas como se eles não existissem.

A passagem sutil da ditadura à democracia através da abertura "lenta, gradual e segura" proposta pelo general Geisel foi mais uma realização historicamente conciliada. Traços culturais, obviamente, não se implantam de um dia para outro: são modos profundos de pensar e agir, enraizados no comportamento social de gerações. No século 19, o jeito brasileiro de lidar com a escravidão criou estratégias cotidianas de sobrevivência que combinava, no dia a dia das pessoas, a imoralidade absoluta da servidão com a legalidade do Estado. Nosso jeitinho de driblar os fatos foi empurrando a História com a barriga. A simples ideia civilizada de entender a nação não como propriedade do Estado mas como uma sociedade civil organizada por leis comuns ainda encontra profundas resistências no nosso atraso.

E é um atraso politicamente assustador: para o "senso comum" – muitas vezes apenas uma ignorância de mil cabeças – não se deve mexer no passado porque houve "erros de lado a lado", como se se tratasse de uma briga de rua. O que houve foi a gigantesca máquina do Estado a serviço de homicidas, entranhados nas mais altas instâncias das forças armadas e do governo brasileiros, e, de outro, um bando de guerrilheiros. Quanto a esses, não é preciso endeusá-los nem demonizá-los, considerá-los idealistas utópicos, malucos perigosos ou simples marginais: não vem ao caso. O argumento de que havia uma "guerra" em curso é apenas cínico. Nos anos 1970, a Itália e a Alemanha desmantelaram completamente grupos semelhantes, e muito mais fortes, sem leis de exceção, sem simulações grotescas de suicídios, sem matar ninguém em sessões de tortura e sem enterrá-los para o esquecimento.

À maneira brasileira, conciliamos: aqui nenhum general foi parar na cadeia, e nenhum torturador perdeu o emprego. Mas parece que não basta: há quem queira que também se apague o passado, que se suprima de uma vez por todas a memória, como um país meliante que avança quietinho apagando seus rastros. A Comissão da Verdade tem tudo para iluminar este passado sombrio.

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