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No tempo do antes, a brava classe teatral – dos figurinistas aos atores – tirava um cachê extra do calendário cristão, com a encenação da Paixão de Cristo nos palcos das sociedades de bairros, nos picadeiros dos circos mambembes e ainda montando Auto de Natal nas paróquias da periferia. Agora, vendo os folhetins eletrônicos a ocupar todos os espaços, restou aos atores o trabalho temporário de Papai Noel.

Auto de Natal é da tradição medieval ibérica, encenação de temas religiosos ou profanos, sérios ou cômicos, que, além do divertimento, moralizavam pela sátira de costumes e reforçavam as verdades da fé. Morte e Vida Severina, poema dramático de João Cabral de Melo Neto, é o nosso Auto de Natal mais celebrado, ao relatar o calvário de um migrante nordestino em busca da sobrevivência.

Dizem que o destino embaralha as cartas, sendo jogadas conforme o juízo de cada um

Na Quaresma, o Salvador morria na cruz e o palhaço encarnava Jesus. O ator José Maria Santos (numa daquelas intermináveis esticadas no Restaurante Palácio depois do trabalho em cena) nos contava de um palhaço que fazia o Nazareno de barbas e cabelos postiços. Parecia o Cristo, mas era o palhaço. Na terceira apresentação de um mesmo domingo, lá estava ele na cruz, os soldados romanos rasgando sua pele, enquanto os fariseus gritavam: “Fel! Fel! Dê-lhe fel!”. Os soldados – o domador do leão, o tratador do elefante e o engolidor de fogo – prontamente prendiam uma esponja molhada na ponta da lança e a esfregavam nos lábios do crucificado, repetidamente. Uma cena cruel, não fosse o fel que era mel: uma cachaça tão esperada que fazia o Nazareno se contorcer em súplicas: “Fel, mais fel! Fel, fel, mais fel!”

No século passado, certo veterano ator e locutor gaúcho terminou sua carreira como Papai Noel no Paraná. Nas safras natalinas, além das casas comerciais, atendia casas familiares de Curitiba e região dos Campos Gerais. Há muitos e muitos anos separado da esposa e dois filhos, que havia largado em Porto Alegre ao fugir com uma dançarina de circo, graças às guinadas do destino soube através de parentes que a família abandonada estava agora muito bem provida: a ex-mulher havia se juntado a um bem-sucedido pecuarista gaúcho com fazendas no Paraná e Mato Grosso e residência no Jardim Social, em Curitiba.

Dizem que o destino embaralha as cartas, sendo jogadas conforme o juízo de cada um. E juízo é o que não seria tão indispensável a um veterano ator em suas últimas cartadas. Com a ajuda de uma amiga agenciadora de artistas, o Papai Noel tratou de distribuir no Jardim Social uma centena de folhetos oferecendo seus carinhosos préstimos de bom velhinho: “Rôu-rôu-rôu! Com o verdadeiro Papai Noel em sua casa, uma ceia natalina para jamais esquecer!” – dizia o panfleto deixado na vistosa residência do rico pecuarista, ressaltando que o custo para a distribuição dos presentes seria de pai pra filho.

Sem nenhuma ironia, o destino cumpriu sua parte e fez com que a ex-mulher do veterano ator telefonasse no dia seguinte para a agenciadora, tratando a festiva chegada do Papai Noel para os preliminares do peru com farofas, frutas e passas.

A família do Papai Noel tinha crescido: a ex-mulher, os dois filhos originais, outro do segundo casamento, noras, netos e o abastado fazendeiro. Depois de 30 e poucos anos sem ver os seus, sem tirar os olhos dos netos, o veterano ator não conseguiu maquiar a emoção naquele jogo de faz-de-conta. Chorou, o Papai Noel chorou e fez chorar a família que nem mesmo imaginou quem seria o velhinho camuflado na fantasia.

Foi esse um Auto de Natal jamais visto.

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