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 | Marcos de Paula/Agência Estado
| Foto: Marcos de Paula/Agência Estado

Com uma parcela dos brasileiros roendo o pão dos ressentidos e outra parte com o copo até aqui de mágoas, os órfãos de Fidel Castro devem se lembrar da frase do escritor inglês W.H. Auden, epígrafe do livro Bar Don Juan, de Antônio Calado: “Quando o processo histórico se interrompe, quando a necessidade se associa ao horror e a liberdade ao tédio, a hora é boa para se abrir um bar”.

Para quem conhece por dentro os intestinos de um bar ou restaurante, de fato, tal ideia surge especialmente quando “a necessidade se associa ao horror”, porque precisam ser dos bravos aqueles que persistem no negócio sem perder a saúde e os últimos gramas de juízo. E, acima de tudo, precisam exercitar a tolerância, porque num democrático botequim o contraditório é a moeda de troca. Unanimidade é um bar vazio. Como discutir política e futebol, se no recinto todos defendem as mesmas ideologias, bandeiras e cores? Boteco de esquerda ou de direita só é admissível do ponto de vista de quem sobe ou desce a rua. Se de esquina, melhor ainda, acolhe vários pontos de vista. Se todos pensassem da mesma maneira, não seria um bar. Seria um tédio.

Boteco de esquerda ou de direita só é admissível do ponto de vista de quem sobe ou desce a rua

Muitos são os adictos ao balcão e à boa mesa que caíram na tentação de abrir um bar, administrar a sua própria passarela de vaidades. Pela mesma porta, foram do sonho ao pesadelo. Poucos contaram tão bem por que não tentaram realizar a fantasia quanto o escritor Gay Talese, em seu livro Vida de escritor. Em Nova York, ele rememora, “eu via em grande escala aquilo que já tinha vislumbrado quando menino em Nova Jersey: restaurantes como salões de deferências, honrarias e autoafirmações. E me abandonei ao prazer do que eles tinham a me oferecer, que para mim não era o que aparecia no cardápio e sim as imagens e sons circundantes, que me transportavam para fora de mim mesmo, o salpico mágico de certa especiaria no gestalt que me elevava a níveis de resposta e fruição que eu muitas vezes experimentava quando ia ao teatro”.

Extensão do teatro, centro de imponentes entradas e saídas, palco para cena de costumes e improvisações, cenário de misteriosas tramas e transações obscuras, de encontros românticos ou relacionamentos ilícitos, por tudo isso Gay Talese, sempre que larga sua mesa de trabalho, gosta de se juntar a um grupo alegre no bar ou restaurante para relaxar, ouvir e se deixar tomar pela excitação, com Dry Martini na medida certa: “Os restaurantes são câmaras de ressonância para bisbilhoteiros veteranos como eu”.

Alvos potenciais para banhos de sangue do submundo do crime, por uma cena burlesca que presenciou certa noite, em Nova York, Gay Talese pode ter desistido do sonho de abrir um restaurante, ou bem ao contrário, ter sua fonte de inspiração intensificada: “Um homem de meia-idade que estava no bar se aproximou da mesa do ator Anthony Quinn e se pôs a imitar com perfeição os passos e gestos de dança de Zorba, o grego, atuação que lhe valeu o aplauso de todo o salão, mas somente expressões contrafeitas de Quinn, o que levou o maître a atirar na rua o bailarino rival”.

Millôr Fernandes achava que “não devemos resistir às tentações: elas podem não voltar”. São invejáveis as pessoas que bebem e comem bem. Pelo menos têm alguma coisa em que botar a culpa. No entanto, com tamanha crise moral, econômica e política, pense duas vezes. Na dúvida, melhor que abrir um bar é abrir uma página no Facebook. Neste caso, só tem uma pequena grande diferença: no lugar do balcão, o teclado.

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