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Gato era o nome dele. Assim o chamavam porque vivia costeando a quadra que compreende a Avenida Marechal Deodoro, Rua João Negrão, Barão do Rio Branco e José Loureiro. Ali morava e trabalhava, não saía daquele quadrilátero.

Numa só quadra Gato tinha tudo do que precisava na vida, sem atravessar a rua. Morava num prédio da Rua Marechal Deodoro. Contador, o escritório era no prédio ao lado. Da casa para o trabalho, partia de um elevador, chegava com outro.

A rotina do Gato não o levava a botar um pé fora da quadra. Tomava o café da manhã por volta das 8h30 e ia tratar de notas e duplicatas, receitas e despesas, numa minúscula sala com banheiro no corredor. Empregado, só um piá para fazer os serviços no outro lado da rua, o leva e traz documentos. Às 11h30, botava o paletó e descia para fazer o aperitivo no Bar Caiobá.

O almoço era em casa; a mulher esperava o Gato com o trivial picadinho, feijão, arroz e ovo frito. No fim do expediente, era sagrado o retorno ao bar que na época havia se transferido da Rua das Flores – ao lado da Associação Comercial – para a Rua João Negrão, quase esquina com a Rua José Loureiro. Portanto, dentro do território do Gato.

Foi no Bar Caiobá da João Negrão que o Gato recebeu o apelido de Gato. Nome e sobrenome ninguém sabia, porque num bar quem batiza o freguês é a freguesia. Vale a escrita do garçom.

Com o dedo indicador, Gato desenhava na mesa de fórmica molhada de cerveja o quadrilátero de sua existência; e justificava por que vivia restrito às quatro linhas: na Rua José Loureiro, farmácia e até chaveiro 24 horas. Na Barão do Rio Branco, uma lojinha atrás da outra. Na Marechal Deodoro, a agência bancária. Na João Negrão, entre uma padaria e um açougue, os amigos do Bar Caiobá.

Costeando a quadra, era o que lhe bastava.

O Gato tinha uma vida mais ou menos, até o dia em que o Bar Caiobá da João Negrão também acabou. Apesar do fechamento anunciado, o Gato entrou em profunda depressão. Perdeu a referência. Nada mais animava sua rotina, mesmo sabendo que o velho garçom do Caiobá estava abrindo outro bar com o mesmo nome na Água Verde. Da casa para o trabalho, de um elevador para outro elevador, raramente se via o Gato costeando a quadra.

"Gato, hoje você não escapa!" No fim da tarde de uma sexta-feira, arrastaram o Gato para fazer aperitivo na sucursal do Bar Caiobá da Água Verde.

O Gato morreu na Água Verde. Tinha acabado de beber uma cerveja com dois rollmops quando se despediu dos amigos contabilistas. Triste, acabrunhado, o bar não era o mesmo, a rotina não era mais a mesma. Pagou a conta, tentou atravessar a via rápida e morreu atropelado.

Atrapalhou o trânsito, fazia alguns anos que o Gato não atravessava uma rua.

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