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Casa de fumaça é uma construção usada em treinamentos de sobrevivência e salvamentos. Entrar nela pela primeira vez é angustiante – e revelador da natureza humana. Ela tem portas de entrada e saída. Mas não janelas. Seu interior é escuro. E, simulando um imóvel em chamas, dentro há fumaça, muita fumaça – irritante e sufocante. O objetivo é entrar por um lado e sair pelo outro. O problema é que, no meio, há um labirinto. Sem enxergar nada, com olhos, nariz e garganta ardendo e esbarrando em paredes, a fragilidade da vida humana se agiganta e nos abarca. O desespero para sair é quase instantâneo.

Quem não encontra logo o caminho correto precisa pedir ajuda aos monitores, que ficam do lado de fora. Em minha experiência, tive a felicidade de entrar com um colega que já havia estado antes numa casa de fumaça. Ele ajudou a me acalmar e a sair. É provável que, se decidíssemos competir para ver quem sairia antes, eu levaria a pior. Ficaria para trás. Ou, noutra situação possível, o desespero poderia me induzir a impedir a saída dele. Nós dois perderíamos. Sem contar com a sorte, a solução sempre esteve no outro, na colaboração – viesse ela de dentro ou de fora da casa.

O incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS), que acaba de completar um ano, teve competição pela vida – como costuma ocorrer em tragédias dessa natureza. Num tumulto e diante do risco de morte, o instinto de sobrevivência costuma falar mais alto. Um dos primeiros ensinamentos de qualquer treinamento de emergência, aliás, é justamente evitar o pânico, que leva ao "cada um por si".

Mas também é verdade que houve solidariedade no drama gaúcho. Gente que entrou e saiu do ambiente em chamas para salvar vidas; que buscou a golpes de picareta abrir uma saída para as vítimas. Sem isso, haveria mais mortes do que as 242.

Em meio a um mundo que valoriza tanto a competição, talvez esta possa ser uma lição menos evidente de Santa Maria – muito além da necessidade de haver mais fiscalização sobre normas de segurança em casas noturnas. As tragédias exigem cooperação, não competição.

O mesmo ocorre com as crises – sejam elas pessoais, familiares, comunitárias ou de toda a sociedade. Mas, nesse caso, tudo acontece numa escala muito mais lenta. No dia a dia, não costumamos ser jogados abruptamente numa casa de fumaça. Vamos nos acostumando à penumbra, aos incômodos e à irritação. Temos dificuldade de ver a necessidade de pedir ajuda ao vizinho ou de lhe estender a mão. Perdidos no labirinto, corremos o risco de não achar a saída. Esse também é um tipo de tragédia.

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