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“Agulhas! Só dois reais!” O primeiro impulso, aquele que vem de dentro, havia sido parar e comprar. Ele nunca soubera costurar. Mas a imagem chamou-lhe a atenção: o velho vendedor, maltratado, equilibrava-se numa muleta de madeira carcomida pelo uso. Coxo. Cansado. Gripado. Fugia do sol forte tentando conquistar um pedacinho do canto da rua sombreado pelas casas. A pequena multidão da feira, contudo, não dava espaço ao velho. Tampouco consideração. Era-lhe indiferente.

O ímpeto original de comprar o jogo de agulhas, porém, sucumbiu à pressa. Sim, pressa – essa desgraçada. Num domingo. Ele tinha compras a fazer. Seguiu reto. Deixou o velho para trás. Passos adiante, ouviu um novo reclame: “Agulhas! Só dois reais! Compra, pra ajudar...”

Desde o início se tratava disso: ajuda. Ele sabia. Mas havia dado as costas ao senhorzinho. Por um instante se arrependeu. Quis voltar. Em vez disso, se justificou: “Não preciso de agulhas. Estou apressado”. Seguiu adiante, rápido. Virou mais um na turba.

Desde o início se tratava disso: ajuda. Ele sabia. Mas havia dado as costas ao senhorzinho

Foi quando soou o sino da velha igreja. Chamava para a missa. Lembrou-se: era domingo de Quaresma. Tempo de penitência. E de caridade. Aquilo que o velho pedira. E que ele não dera. Cada badalada, então, martelou fundo n’alma as agulhas que não levara. Sentiu dor. E arrependimento.

Sabia que poderia carregar aquela sensação, como se fora aço frio enfiado no peito, até um dia ignorá-la, esquecer sua incômoda presença. Já fizera isso outras vezes. Mas naquela ocasião decidiu que não. Pensou: a sorte não havia sorrido para o ambulante. Quis dar uma segunda chance ao velho. Então parou. Deu meia-volta. E saiu em sua busca.

Não foi difícil encontrá-lo. Quando o avistou, seguiu determinado em sua direção. A dois metros de abordá-lo, no entanto, sentiu repulsa. E passou batido pela segunda vez. O velho espirrara forte em direção às cartelas de costura que carregava à mão. Inclusive naquela que teria um comprador certo.

Sentiu mais agulhas cravando a consciência. Então parou de novo. E refletiu: “Todos ficam doentes. É na enfermidade que mais se precisa de que alguém lhe estenda a mão. É o que eu gostaria que fizessem comigo”.

Voltou. Pediu ao velho uma cartela. Recebeu-a. Deu-lhe cinco reais. Disse-lhe para ficar com o troco – era para ajudar, enfim. Ganhou um obrigado e um sorriso de resposta. E sentiu-se bem. Percebeu, então, que ele também ganhara a segunda chance – e não apenas o senhor da muleta. Havia permutado as agulhas fincadas n’alma pelas do jogo de costura.

De volta para casa, guardou a cartela numa gaveta. As agulhas estão lá até hoje. Não sabe o que fazer com elas. Ainda pensa que não sabe coser. Mal sabe que já começara a costurar um importante pedaço solto de sua vida.

Caros leitores, entro em férias e volto a escrever no fim de abril.
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