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O romance 1984 descreve uma sociedade em que o Estado – personificado na figura do Grande Irmão (ou Big Brother) – monitora por meios eletrônicos, de forma intensa e invasiva, o dia a dia de todos os cidadãos, inclusive suas vidas pessoais. A obra, um clássico do inglês George Orwell publicado em 1949, é antes de tudo uma mordaz crítica ao totalitarismo, muito antes de ser uma inspiração para o mais famoso reality show da atualidade.

Ainda que estejamos longe de ser um Estado autoritário, de tempos em tempos os governantes brasileiros flertam com a ideia do Big Brother político – a inversão do princípio democrático de que o aparelho estatal deve servir à sociedade e não o contrário.

O projeto de lei recentemente enviado pelo presidente Lula ao Congresso para dar poderes de polícia aos fiscais da Receita Federal é um desses perigosos flertes com o autoritarismo. A proposta prevê que os agentes do Fisco possam quebrar o sigilo fiscal e bancário, invadir casas e escritórios e penhorar bens de cidadãos e empresas suspeitos de sonegação tributária. Tudo sem autorização prévia da Justiça. Tudo para aumentar a arrecadação. Tudo em prol do Estado e, teoricamente (apenas teoricamente), em nome do bem social.

Os governos têm todo o direito de investigar e punir os sonegadores. Desde que o façam de forma justa. Mas o projeto, se virar lei, concederá à Receita e aos fiscais um poder exagerado de bisbilhotar a vida alheia, tanto dos sonegadores como dos cidadãos honestos. Será praticamente impossível evitar abusos de autoridade.

Por coincidência (ou não), o projeto foi enviado ao Parlamento no mesmo momento em que parece ter surgido um novo consenso ideológico a respeito do papel dos governos nesse período pós-crise econômica internacional. Em contraposição ao que se chamava de Estado fraco, neoliberal, agora a moda é o Estado forte, neointervencionista.

Ainda que os governos tenham sido importantíssimos para conter o caos econômico, o conceito do Estado forte não é necessariamente válido em todas as situações. Histo­­ri­­ca­­mente, o Brasil viveu dois períodos de governo forte, tanto na economia como na política. Em ambos os casos vivíamos em ditaduras: a de Getúlio Vargas e a dos militares.

Estado forte, portanto, pode ser sinônimo de cidadão e sociedade fracos. Aceitar sem discussões o modelo estatal que emergiu da crise pode ser um tiro no pé. Pode ser o passaporte para um Big Brother do qual nos arrependeremos de participar.

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Fernando Martins é jornalista.

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