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Babei ao saber do livro O que se passa na cabeça dos cachorros, do jornalista canadense Malcolm Gladwell. Culpa do título. Como qualquer adorador do comportamento canino, já me perguntei o que se passava na cabeça do Bronco, do Pancho ou da Brisa, para citar três dos muitos cães que se hospedaram no quintal lá de casa. Nunca obtive resposta à altura. Na falta, imaginei qualquer bobagem.

Entre minhas fantasias está a de que reencontrarei na eternidade meus animais de estimação. Nesse dia de júbilo, ao ver o dono ressuscitado, hão de levantar suas orelhas, abanar o rabo sobre as nuvens, e entre lambidas e afagos desmentiremos a máxima vaticana de que cachorros não têm alma.

Apesar de toda essa paixão sem focinheiras e sem juízo, confesso me sentir desconfortável com o fenômeno da humanização dos cães, assunto explorado amiúde em revistas científicas e em consultorias financeiras.

Se caminho no parque e um daqueles ranhetas esganiçam, a dona me olha como se eu, pagador de impostos, tivesse provocado sua cria malcriada. Pior que isso são os pequenos tiranos de coleira que saltam de repente das janelas dos automóveis, nos tratando, pedestres rumo à faina, como se fôssemos foragidos de Catanduvas. "Vira-lata!", defendo-me.

Suspeito, inclusive, que a humilhação diante da ascensão socioeconômica dos com-pedigree está provocando uma rebelião silenciosa prestes a eclodir. Sob o domínio do 1 milhão de cachorros de Curitiba, faremos como os 300 mil egípcios na Praça Tahir. Exagero? Eu não desdenharia.

Repare nas plaquinhas espalhadas pelos canteiros, clamando bom senso dos bípedes que levam seus Mubaraks para passear. Ah, monstros, ignoram que seus lulus defecam como ditadores, dando a mínima para a chusma pedestre. Ainda não me tornei um notável colecionador de escritos de "plaquinhas preventivas", como fazia o célebre sanitarista Noel Nutels com as frases de banheiro. Mas vi "ditos anticocô" o bastante para dividi-los em categorias, o que pode facilitar futuras pesquisas.

Existe a "placa urbanizada", cujo design se integra ao mobiliário urbano. Diz "Proibido animais". Só. Como nem sempre cachorro é visto como bicho, surgiram os avisos cheios de graça, para ajudar no raciocínio. Chamaria de "plaquinhas da esperança": espera-se que ao sorrir o dono do totó entenda que a sustentabilidade das fezes é da sua conta.

Uma das mais divertidas é a do Edifício Pallazo – na Rua Bom Jesus com a Avenida Paraná, no Cabral. Ali, há nada menos do que cinco avisos de metal prata – finésimos – mostrando um cão em pé, varrendo e juntando suas adoráveis e perfumadas caquinhas. O fraseado é digno de Buckingham: "Ajude a educar seu dono como um membro da família".

Como o prezado leitor deve concordar, essa supina campanha antibosta atribui aos nobres mascotes uma missão sobrenatural – a de ditar bons modos a uma espécie superiora, que passou pelo Renascimento, que inventou o iPad. A tática é da lavra de um Gladwell: vendo a foto do cachorro fazendo das patas coração, o proprietário se digna curvar e recolher aqueles bolinhos mimosos nos quais pisaremos rumo à missa no Bom Jesus, à Cartoom Vídeo ou a um café na Requinte.

Na Água Verde, onde moro, cães são tratados com menos deferência. Lembro de ter visto na airosa Rua Coronel José Gomes – perfeita para um footing em quatro patas – uma plaqueta em que se suplicava ao cão que não fosse tão "porco" quanto seu digníssimo. Encaixa-se na categoria "placa palmatória", em que a distância entre ensinar e partir para a ignorância é a de uma unha.

A propósito, não achei mais a dita cuja e concluo que a peleia entre os suínos, caninos e humanos chegou a bom termo naquelas plagas. Tomara. Porque na Rua Assis Gonçalves com a José Cadilhe, ali perto, a incontinência dos dogs ainda mexe com os nervos da população.

Num muro está escrito, em letras graúdas: "Não faça do meu jardim o banheiro do seu cachorro. Obrigado". O dizer é um clássico da categoria "cuide do seu que eu cuido do meu". Meio individualista, né. Mas se dirige ao dono do cão e não ao cão, de modo que ainda nos resta uma nesga de humanidade. A gente não sabe o que passa na cabeça dos cachorros, mas sabemos o que se passa na nossa quando os pés acertam em cheio. Que cachorrada.

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