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 | Foto: Ivonaldo Alexandre/Arte: Benett
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Gostaria de contar essa história tal e qual me foi relatada, sem salamalaques. Aldo de Britto Lima foi guri criado solto nas matas de araucárias. Tinha irmão no Exército, mana no convento. Jacinto, pai de todos, homem remediado, derrubava pinheiros-do-paraná. Até lhe faltar a saúde. Até não lhe sobrar um tostão, assim como aos seus, que se mandam para Curitiba, do dia para a noite retirantes de rodoviária.

Ao chegar, dona Rosalina, a mãe, mais oito filhos em roda da saia, ouve pelo rádio que o irmão amado que lhe daria amparo na capital morrera naquele dia, ai. Azar dos azares, a família Lima acaba num porão infame da velha Água Verde. Resta-lhes o suor. Para as gurias, casa de família. Para Aldo, franzino e cismado, uma vaga na Casa do Pequeno Jornaleiro. Era 1949.

No abrigo, cada norma uma sentença. Levantar-se às cinco. Banho uma vez por semana – gelado. Troca de roupa, às sextas. Se comprasse comida com a venda dos jornais, palmatórias. Para que bem entendesse, abriram-lhe um armário – ali dentro cumpria castigo escuro, vestido de saia, um pequeno jornaleiro humilhado.

Manhã bem cedo o bedel batia a chave de ferro no osso do tornozelo para acordar os piás. Em caso de manha – pé de ouvido e nem um pio. "Tenho orelha grande de tanto puxão...", disse-lhe um órfão. Não tinha graça. À mesma hora, nos mesmos pontos da cidade, tinham de fazer solos e cantar a manchete: "Morreu Francisco Alves", "Matou o amante em hotel da Ri-a-chu-e-lo". No almoço – feijão-arroz-carne de terceira. À noite, escola e cochilo em cima dos livros.

O dinheirinho das vendas ia para uma poupança. Moedas pingando, tempo passando. Aldo, com medo da saia, se torna jornaleiro exemplar. Peraltice, apenas uma, o furto de um ovo de Páscoa na Tiradentes, nunca descoberto. À mãe, acabando-se como diarista, da dor nada contava. E havia, por Deus, a boa médica e professora Aglaé Taborda Ribas, seu anjo no inferno. "Onde andará?"

Depois de cinco anos, hora de partir. Em cerimônia do adeus, mandam-lhe beijar as mãos de dona Hermínia Lupion, a última ordem que obedeceu. Recebe o cheque de Cr$ 52.747,20, ganha foto e notícia chapa branca no jornal O Dia, edição de 20 de fevereiro de 1957. Pensou: "O saldo não é ruim".

Os dias de interno lhe arruinaram os dentes. Mas tinha conhecido graúdos: vira os bigodes pretos de Ney Braga, Getúlio Vargas discursar no Braz Hotel, o jogo Espanha e EUA no Durival de Britto. E jamais esqueceria a visita surpresa do governador Bento Munhoz da Rocha à casa.

A vida seguiu, com preços altos. A poupança quase toda um falso amigo embolsou. Da Admissão do Ginásio, nunca soube se passou – pegara segunda época em Latim. Logo casou e teve filhos, enviuvou, casou-se de novo, aposentado está. Dos idos, jurava ter esquecido.

Quando a velhice veio – Aldo tem 75 – deu de sentir a chave ricocheteando no ossinho do pé, o macacão cáqui molhado de chuva, a bondade de Aglaé. "Será que sonhei?", se pergunta. Levado pela memória, sai do Alto da Glória e vai à Biblioteca Pública e ali se confunde aos 3 mil usuários/dia. Num canto, o ex-jornaleiro datilografa notícias de seu silêncio.

"Vale um livro?", quer saber. Fuço "o que anda lendo?". Fala de A arte de ser feliz, de Schopenhauer; de T.S.Elliot, de Augusto dos Anjos. Digo que Aldo tem a ver com Charles Dickens. Depois me conta do barulho dos torcedores do Coxa na janela de seu prédio. Rimos, nos despedimos. Ele me pede que nesse texto agradeça ao Bento por ter criado a Biblioteca. É ali que o piá que gritava "extras" no Correio Velho hoje gosta de estar.

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