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 | Foto: Felipe Rosa – Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Felipe Rosa – Arte: Felipe Lima

Digo sem medo de errar: uma das favelas mais incríveis do Brasil está em Curitiba e atende por Ferrovila. Nasceu em 1991, na beira dos trilhos do trem, cortando de cabo a rabo divisas como Portão e Novo Mundo. Faça um exercício de imaginação: a ocupação singrava a cidade em 11,5 quilômetros (com as regularizações, hoje são 7,5 km) e tem magérrimos 40 metros de largura. O resultado é um bairro em linha reta, de uma imensa rua só.

Não há nada igual. Quem mora na Ferrovila não tem vizinho da frente, só do lado. Visitar parentes exige muita sola de sapato, seguindo metros e metros para frente e para trás. Nunca se zanza de bobo alegre por ali. Há poucos atalhos. Não estranha que essa cartografia guarde tantas surpresas por metro quadrado. A começar pelo nome das vilas que formam o bolsão.

Não sei se foi para poupar as pernas das lideranças, que teriam de andar como camelos, mas a Ferrovila é dividida em cerca de 15 associações, pequenos reinados populares. Sobrou criatividade na hora dos batizados. Tem a vila Cadê o Meu Lote?; a Terminal de Carga, que parece título de seriado de tevê; e a Santa Clara, inigualável na geografia, história e humanidades em geral.

Santa Clara abriga 136 famílias e fica, digamos, no "Centro Histórico" da Ferrovila, área onde um dia funcionou a fábrica do Matte Leão e a dos Móveis Guelmann, que ali perto mantinham alojamentos de operários, campinhos de futebol e alguma promessa de felicidade. Hoje o que se vê mal lembra aqueles tempos: a vila está espremida entre muros altos, erguidos por capitalistas, o que faz dela uma locação perfeita para um filme do M. Night Shyamalan. Mas a falta de ar passa assim que a gente vê, num canto do asfalto, a caixa dos Correios e, do lado, uma capelinha dedicada a Santa Clara. Ufa! A Ferrovila não passa de um bucólico cenário de subúrbio.

O líder comunitário Divair Gonçalves, 45 anos, o Divo, diferentemente dos companheiros de luta, queria dar um nome canoro à parte que lhe cabia naqueles dormentes. Escolheu "Santa Clara" porque lhe caía à língua como um doce, só por isso. Tempos depois, viu uma reportagem na televisão sobre a rica e bela Clara, que no século 13 se fez mendiga e enfrentou sozinha um exército de sarracenos. Yabadabadoo, mal cabia de tanto orgulho. Foi quando lhe disseram que no Umbará um morador tinha erguido uma capelinha para Nossa Senhora de Fátima, ao lado da Rua Nicola Pellanda. Poderia fazer o mesmo para Clara. E fez.

A Ferrovila logo ganhou aquele que deve ser um dos menores centros de peregrinação do mundo. Mais de uma vez Divo acordou com a voz de algum morador rezando ao pé da santinha. Há quem se benza ao passar. E mesmo com a comunidade evangélica, cada vez maior, o minissantuário não enfrenta cismas vaticanos. Muitos cultos da Assembleia de Deus são feitos em frente da capelinha. Rola até pelada, não sem prejuízos à Clara, dia desses atingida por uma bolada. Mas passa bem. O conserto da vidraça está orçado em R$ 70.

Divo nunca teve uma casa própria antes da épica madrugada de 7 de setembro de 1991, quando participou da ocupação da Ferrovila. É engraçado vê-lo enumerar as ex-favelas em que viveu – "sabe o Jardim Botânico? Morei onde é a pista de ciclismo". "Sabe o Big? Era uma plantação de milho – comia espigas meses seguidos". "Lembra do Mercadorama da Marechal Deodoro? Pois foi um terreno baldio. A gente fazia mudança no carrinho de mão...", segue contando, até sua memória aterrissar no dia em que marcou com uma fita os 10 x 20 metros que lhe cabiam na beira da linha do trem. Silêncio. Enfrentaria um exército de sarracenos para defendê-lo.

A propósito, amanhã é Dia de Santa Clara. Vivas!

PS: a capelinha da Rua Nicola Pellanda, inspiração para Divo, foi criada pelo comerciante José Tadeu Orso, 52 anos, em 1996, também num 7 de setembro, data de aniversário da Ferrovila. Noivas amam tirar fotos no local, que segue um padrão internacional, prescrito pelo Grupo da Imaculada, propagador da reza do terço. Há 19 urnas idênticas em todo o Brasil.

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