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 | Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Até o fim de novembro, a assistente social Adriana Matias, 44 anos, vai fechar as malas, sair de braço dado com o marido e as filhas, alugar a casa de Colombo e voltar para sua terra: a capital pernambucana. Hoje é seu último dia de trabalho no Centro Educacional Marista Irmã Eunice Benato – ali no Portão 3 da PUCPR –, mas as despedidas começaram faz uma semana. Foram um pré-carnaval de Olinda. Não faltaram lágrimas, recuerdos de Ypacaraí, refrigerantes com mimos e, sobretudo, palavras inspiradas de adeus, ditas com o lindo sotaque recifense dessa mulher que nos adocicou ao longo de duas décadas de convivência. Valeu, guria.

Ouvir a voz de Adriana é uma experiência e tanto, em mais de um sentido. Sabe aquele palavrório das ONGs, governos, igrejas, partidos de esquerda, grupos de gênero, ambientalistas e coisa e tal? Pois é – às vezes soam como uma overdose de bom mocismo. Mas, em se tratando dela, formam cordéis encantados. Só nossa amiga para usar de suingue e malemolência ao falar “todos e todas”, “consultar as bases”, “empoderamento”, “saberes”. A explicação para tamanha destreza verbal é só uma – Adriana Matias “aprendeu a falar” com o movimento social. É sua língua.

Foi educadora de rua, preceptora de jovens, membro de ONGs do barulho, o bicho. Sobretudo, foi ela mesma

Nascida e criada nos morros recifenses, conheceu de perto a pobreza e seus tentáculos – na pele e na despensa. Até hoje morre de medo de temporal, tantas vezes, na infância, viu aguaceiros desabarem barracos em que moravam seus coleguinhas. A mãe, dona Josefa, temia que a casa de rejunte de barro onde morava a família tivesse o mesmo destino. Rezava feito uma romeira do Juazeiro, mas também saía em protesto, pedindo barreiras às autoridades. Ver a indignação brechtiana da mãe teria sido a primeira experiência política de Adriana. A segunda se deu quando conheceu o padre Reginaldo Veloso.

Reginaldo é conhecido pelas músicas que compunha, pela dobradinha com dom Hélder Câmara e pelas enxaquecas que causava à hierarquia da Igreja. Para Adriana, é o homem bom que a resgatou da alienação, provocando-a a reagir. Em vez de amargura, ação. Virou o que virou. Adolescente, cortava os cabelos da turma do morro e engatinhava naquela que se tornou sua especialidade – a mobilização popular. Tempos depois, quando desembarcou em Curitiba, já era uma expert, escolada em socorrer os necessitados e protestar contra os caretas.

Acumulou milhagens no setor social. Foi educadora de rua, preceptora de jovens, membro de ONGs do barulho – como Iddeha e Cefúria –, o bicho. Sobretudo, foi ela mesma – uma mulher ligada nas quatro pilhas, dada a fazer revoluções por minuto. Garanti para ela que não ia fulanizar esse pequeno texto de despedida. “A gente não faz nada sozinha, faz junto”, reivindica com seu jeitão de líder comunitária à beira de subir nas tamancas. Pois aqui vai a promessa – gente, faltariam páginas, fossem citados todos os partners listados por Adriana. Uma lista telefônica. Não lhe atirem mágoas ao rosto: juro por Deus Nosso Senhor que ela lembrou o mundo, incluindo a tia do cafezinho e a da limpeza.

A última ação na qual se embrenhou deve entrar para a história. Trata-se de um fórum para abrigar as mães da Vila das Torres cujos filhos foram assassinados pelo tráfico. O grupo completou um ano em setembro e acaba de ganhar um nome oficial – Mulheres Guerreiras. Em parceria com as assistentes sociais Heloísa Selma Siqueira de Lima, do Grupo Marista, e Ana Paula Greca, da prefeitura – para citar duas –, Adriana conseguiu o que muitos julgavam pedido para o Papai Noel. Hoje há Rosas, Margaridas e Hildas falando de seus Giovanis, Lucas, Felipes e Cahuês.

A torcida é para que essa trupe ganhe tanta relevância quanto as Mães da Praça da Sé, de São Paulo, e as Mães pela Igualdade (organização LGBT do Rio de Janeiro), fora as internacionais – Mães Afroamericanas, dos EUA; Damas de Branco, de Cuba; e, por supuesto, as Mães da Praça de Maio, da Argentina. Mas nossas mater dolorosas da vila não se veem pontificando o noticiário. Ainda se acostumam a usar a palavra, santo remédio para afugentar a culpa e o medo. Aprenderam umas expressõezinhas novas com a moça de Recife, boa de prosa. Soube que lhe deram abraços fortes ao saber que está de partida – e um “obrigado”, sussurrado no ouvido.

Em tempo. Adriana Matias volta ao Recife para cuidar dos pais idosos. Vai morar no Morro da Conceição. Reginaldo Veloso, que não é mais padre, se desdobra para recebê-la com festa de panos e anéis. Ela mal vê a hora de lhe contar o que fez com as palavras que ele, um dia, lhe deu de presente.

  • A assistente social Adriana Matias volta para Recife depois de 23 anos de serviços prestados a Curitiba.
  • Dentre os muitos trabalhos que realizou na cidade e região, a atuação na Vila das Torres foi a que mais marcou. Adriana estava ligada ao Centro Educacional Marista desde 2010: o local atende cerca de 400 crianças , adolescentes e jovens. Foi dessa atuação que nasceu o fórum Tecendo a Rede na Perspectiva dos Direitos Humanos, liderado por Adriana e por Heloísa de Lima.
  • Adriana volta para Recife, com intenção de atuar no setor social. Seu endereço deve ser o Morro da Conceição.
  • O grupo “Mães das Torres”, ou “Mulheres Guerreiras da Vila das Torres” rompe o silêncio de mulheres cujos filhos foram portos pelo tráfico de drogas.
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