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Tem um mendigo loiro à solta pela Água Verde. Não chega a ser, assim, um Rafael Nunes, o “mendigato”, mas bem que podia fazer parte do corpo de baile do Wisla ou do Poltava nos tempos da calça vincada. Suspeito que seja um morador de rua em início de carreira, recém-nocauteado pela espiral da pobreza, da dependência química ou da insanidade.

Por enquanto, não pede nada nem aluga ninguém com histórias tristes que cansam nossas almas sedentas por chope gelado e conversa fiada. Com cara de poucos amigos, mais parece um animal arisco. Anda ocupado demais com o lixo da padaria e dos bares, pródigos em sobras de boa qualidade. Pão velho – que a mãe mandava beijar antes de deitar fora – é mesmo coisa do fundo do baú.

Imagino o desconforto que o novo vizinho desperta. Ele se parece demais a alguém que a gente conhece – quem sabe aquele colega polaco com o qual dividimos carteira no “João Toca” ou no “São Luís”. Vê-lo passar, cobertor debaixo do braço, roupa de ontem, tem o efeito de um espelho: no lugar dele poderia estar um de nós.

O medo de virar mendigo habita o imaginário brasileiro, e nem é preciso recorrer a Roberto DaMatta ou a Jessé de Souza para explicar. Basta puxar pela memória nossa rotina de contas feitas na ponta do lápis. Escorre suor frio, seguido da miragem de que estamos numa fila gigante da Fundação da Ação Social (FAS), à espera de uma cama de campanha, debaixo dos berros de uma atendente nervosa. Não é balela. A não ser que alguém seja podre de rico e jante dia sim, dia não no La Varenne, a imensa maioria já se viu – em delírios – tomando um sopão numa lata de leite Ninho.

O medo de virar mendigo habita o imaginário brasileiro

Dia desses, em entrevista, o empreendedor Ricardo Dória confessou que, no início de suas andanças pelo mundo coworking, nutria pânico de não dar certo e virar mendigo. A miséria nos assombra. Anos atrás, ao perfilar Aldo Ristow, o Barba, um morador de rua punk, recebi mensagem de um leitor que havia estudado com ele no “Doutor Pedrosa”. Desabou: não conseguia acreditar que alguém que conheceu estivesse em tamanha piorreia. Lembro também de uma amiga em estado de choque, depois de um mendigo pará-la na calçada e dizer: “Joana, sou eu”. Tinham trabalhado juntos.

Tudo isso é para dizer que tem sacana que bota fogo no mendigo; tem maluco que quer despachar a pobreza para Marte; tem macho de Facebook promovendo barbaridades contra os pedintes. Mas, sobretudo, tem quem se sinta impotente diante de tanta gente em farrapos circulando pela cidade. É o ponto em que estamos.

A confusão entre impotência e indiferença é uma casca de banana. Boa parte das pessoas prefere fazer o que pode, evitando a sedução dos moinhos de vento. Essa relação delicada aparece bem azeitada no ensaio Diante da dor dos outros, de Susan Sontag. A ensaísta – uma mulher magnânima – se desculpa por ter apregoado que as pessoas ficaram insensíveis em massa, o que não faz o menor sentido. Em se tratando da mendicância, a discussão embola ainda mais.

Os muitos pobres estão cercados de ambiguidades, que perpetuamos sem perceber. Herdamos a tradição cristã medieval, na qual os miseráveis podem ser Deus disfarçado, testando nossa virtude sem que saibamos – algo como o quadro “Chefe secreto”, do Fantástico. Ou seres entregues ao mal, o Velho do Saco. Lascivos, blasfemos, amorais, vadios – sobram adjetivos por quem os julga merecedores de cada bagana recolhida no asfalto.

O ensaísta argentino Alberto Manguel estudou bulas papais sobre a patuleia, a matula, como se dizia, ao tentar explicar por que o pintor Caravaggio despertou tanta ira ao usar necessitados como modelos para representar os santos, os apóstolos e a Virgem. Em tese, eram os diletos de Deus, mas o artista foi tomado como um herege. O texto é sobre o século 17, mas poderia ser lido por membros de associações de bares e shoppings em geral.

OK, é desagradável traçar uma porção de fritas, no happy hour, tendo a seu lado um desvalido de posse de um roteiro bom, muito bom, testado com sucesso 100 mil vezes. Mãos ao bolso. Cada mendigo que passa altera nosso batimento cardíaco e acorda nossa culpa cristã. No meu caso, chego a escutar uma musiquinha do tempo do catecismo, ainda com ecos da Ação Católica: “Para mim, a chuva no telhado é cantiga de ninar, mas o pobre meu irmão, para ele a chuva fria vai entrando em seu barraco e faz lama pelo chão”. Uma tortura. Vou fazer lavagem cerebral para nunca mais lembrar de Balada da Caridade, rs.

Resta entender. Tem uma cena do incrível documentário Pro dia nascer feliz, sobre nossa tragédia educacional, que, penso, bem traduz o que acontece. Numa roda de conversa com alunas de um supercolégio de São Paulo, a adolescente Cissa chora ao dizer para o diretor João Jardim que se importa, sim, com a pobreza, é claro, como não, mas que, se parar para ajudar cada um que encontra, não vai ter como estudar Física ou progredir no inglês. Será tragada pela realidade. O desabafo de Cissa causa asco porque ela é rica, candidata aos melhores intercâmbios, mas, convenhamos, soa bastante familiar.

Em 2001, ao fazer uma exposição mix de moda, arte e cidade, o estilista Carlos Miele disse ter saudade da época em que conhecia o mendigo da rua pelo nome – ou pelo apelido. Verdade. Há 40 anos, o “Homem Sem Perna” era tão famoso na Água Verde quanto a professora Margarida Turin. O crack, a violência, o inchaço das cidades, o desemprego, a expulsão do campo e a absurda facilidade com que aceitamos que parte imensa da sociedade chupe do dedo só fez roubar essa proximidade. Escapou do nosso radar o mendigo romântico, dono de um segredo – o Carlitos, os clochards, o Belchior da novela Estúpido Cupido. E agora é que são elas.

Se me permitem, não ajuda muito se entregar só à pena – um sentimento a anos-luz da compaixão –; ou tampouco clicar no botão “transferência”, mandando a conta para o poder público, que isso é criancice. O melhor remédio é a curiosidade. O morador de rua não é só o cara que vive no sereno – é um sujeito que entende a logística do descarte de alimentos, pela qual se norteia na hora da coleta; um cabra capaz de fazer o top ten das melhores marquises e de identificar corações bondosos só de piscar. Manja da alma. É também um economista, que vive com quase nada; um habitante da cidade subterrânea. Com sorte, pode ser Mel Brooks – o milionário disfarçado de Que droga de vida (1991).

Para quem não está a fim de se entregar a essa faceta da vida urbana, restam os condomínios fechados, mas sinto dizer que os donos de bares não poderão se mudar para detrás dos muros. Quanto a fugir para a Europa, necas, pois lá os velhinhos órfãos da previdência nos assediam, sem dó. E em Nova York há 60 mil sem-teto prestes a virar picolé.

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