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Fica lavrado que o caboclo Antônio Pereira, nascido no mato, órfão, dois anos de escola, criado às margens do Assungui, em Campo Largo, é um montanhista porreta. Além dos 15 filhos, 53 netos, 43 bisnetos e 2 tataranetos, esse vivente fez 769.500 metros de escalada em 31 anos de serviços prestados. Descobriu trilhas, plantou palmitos feito um condenado, salvou da morte jacus e jaracuçus. Não tem inimigos. E dorme que é uma beleza – deu até para sonhar que está de novo lá, no Marumbi, "tocaia do seu destino".

O sucedido

Onde está hoje o Banco do Brasil da Praça Tiradentes havia uma feira. E onde havia uma feira, trabalhava um homem de nome Antônio Pereira, o Palmiteiro, assim conhecido porque abastecia os lares curitibanos com palmitos da melhor qualidade. Se não lhe falha a memória – "a legislação era diferente." Além do mais, seus maus-bofes com o meio ambiente eram de outra natureza: gostava mesmo era de caçar – e foi depois da feira, certa vez, que partiu rumo a uma expedição animal à Serra do Mar.

Era 22 de junho de 1969. Ainda faltava um mês para Armstrong, Aldrin e Collins chegarem à Lua. Mas Antônio, que mal sabia de astronautas, daria naquele dia um pequeno passo para a humanidade. E um passo maior do que a perna. Não se sabe se foi por milagre ou por conta de alguma simpatia de dona Teodora, sua mulher, mas de repente, eis que de repente Palmiteiro, o caçador, baixou as armas e de botina mesmo se pôs a escalar os 1.539 metros do Marumbi. Nascia o mito.

Se você imaginou algo parecido com Moisés subindo o Sinai para receber as Tábuas da Lei, esqueça. A primeira vez de Palmiteiro não foi um épico bíblico com trilha sonora de Elmer Bernstein. "Passei um medão", admite o veterano, hoje com 85 anos e um pacato morador de uma casinha de fundos na Vila Hauer. É ali – onde os cães ladram e as madeiras rangem – que guarda um caderno pardo de guarda-livros, no qual anota o que lhe sucedeu naquele inverno de 69 – e nas estações que se seguiram.

Bom – Palmiteiro não viu a cara da morte nem bateu um plá com o fantasma da Maria Bueno. Apenas descobriu que escalar era mais divertido do que caçar ou vender palmitos na Tiradentes. Tanto é que, apesar das avarias na botina, decidiu que iria voltar sempre que pudesse.

Não só cumpriu a promessa feito um santo como a transformou num trunfo: até hoje, Antônio subiu o Marumbi nada mais, nada menos do que 500 vezes. Sua última vez foi em 22 de abril de 2000, ano da graça dos 500 anos do Descobrimento do Brasil.

Depois disso, aquietou-se, trocando a botina pelas chinelas.

"A idade não ajuda. Sabe como é, velho tropica, se arrebenta e cai", encurta o bravo Palmiteiro, cujo nome está gravado na história do Marumbi. De cima a baixo. Melhor explicar.

Com tanto sobe-e-desce, certa feita Antônio decidiu tirar férias da feira e se mudar para a Serra do Mar. Ficou 16 anos, tempo o bastante para "andar nas nuvens" até três vezes por semana e lotar seu caderninho de anotações. "Paredão Preto, 1973". "Vale dos Perdidos, 1978." Concorrência, só mesmo de um japonês que subiu a montanha 234 vezes. Na 235ª, choveu. "E não é que depois ele morreu atropelado?"

Nas horas vagas, o exilado ganhava uns trocos fazendo calçadas nas vilas serranas. Por pouco não virou o Antônio Calceteiro. Por seus cálculos, fez três mil metros de passeio. Pelos serviços prestados, ganhou dos amigos de escalada um prêmio "à altura": uma viagem a 4,2 mil metros de altitude, no Peru. Caneteou: "Trilha inca, 1996".

É seu épico

Mas seu lírio é o Marumbi – quintal da vida. A letra graúda no caderno pardo bem prova. Mostra o dia de cada escalada. Se estava com o Brand, Zemiro, Caladinho ou com o Vitamina. Se passou pelo Facãozinho, pelo Martelo ou pelo Sardinha. "No Salto do Diabo, quase virei carne moída nas rodas do trem. Nem te conto. Isso tudo ainda vai virar um livro", profetiza – da porta da casa de madeira azul-piscina, direto da Vila Hauer, a quem interessar possa.

Palmiteiro confessa que viveu. Que fique escrito.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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