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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

“O que é um ser humano?”, me perguntou o danado do jornalista Fernando Satoru, ao microfone, em meio a uma palestra, esta semana, para estudantes de Letras da FAE. Pois é. Tive de tirar uma resposta das entranhas, com tudo o que isso implica. Vou ampliar, editar os gaguejos, os brancos, os “hãs”, as merdas e demais downloads eternos para dizer – em resumo – que o ser humano deve ser o mínimo múltiplo comum de uma pá de definições dadas por gente inteligente. Ou seja: quem sabe disso são os outros, não eu.

De pronto, o que vem à mente é que em alguns momentos somos mais humanos do que nos demais, ou seja, fracassamos de duas em duas horas. Há variações. A gente tende a ser melhor na sexta que na segunda. Melhor debaixo do sol de setembro que em julho. Melhor em público que no espaço privado. Com exceção das amigas Andréa Morais e Joanita Ramos – e outros tantos – a quem coloco na categoria “ser humano superior”, a maioria dos mortais enfrenta oscilações de humanidade, indo do estágio mais pedestre aos altares da alteridade. Lembram do rabino Henry Sobel – um dos santos cívicos da luta contra a ditadura e a tortura –, pego no roubo das gravatas? Pois tem disso: a humanidade é bipolar e cultiva, com requintes, a autossabotagem.

Antes que aristotélicos preguiçosos cobrem lógica, coerência, ato e potência, causa e efeito, e me atirem ao rosto que a afirmação acima é um absurdo filosófico, recorro ao historiador Richard Sennett, ótima companhia. Em seu belíssimo Carne e pedra – um desses livros que valem uma vida –, defende que quando estamos em sociedade somos mais inteligentes e cordiais. Tornamo-nos uma espécie de projeto-piloto ambulante. Fora do espaço doméstico – onde tendemos a praticar as piores picuinhas, derrubar açúcar na mesa e infernizar a santa mãezinha –, até a temperatura do corpo muda, algo como dois graus acima do normal. Daí os gregos gostarem tanto de ágoras, arenas, tribunas, nas quais suas bochechas rosadas em febre serviam de prova de que estavam curtindo a coletividade adoidado.

Basta descobrir onde fica o espaço de felicidade das pessoas para encontrar o pote de ouro ao pé do arco-íris

Há controvérsias, contudo. Para dissertar sobre o humano, é preciso recorrer também a Gaston Bachelard. Para o autor de Poética do devaneio, um homem e uma mulher exibem o ápice de sua forma quando estão no seu “espaço de felicidade”. Suspeito que esse conceito é uma das chaves mais bem guardadas para redigir um “manual de instruções sobre o ser humano – aprenda a usar”. Simples de tudo, Bachelard sugere que os corpos não suportam serem infelizes por muito tempo. Do contrário, adoecem. Refutam de enxaquecas a pentelhações em geral. Irritam-se. De modo que quem insiste no baixo astral deve estar privado dos mecanismos da razão, ou seja, pirado.

A máxima de Bachelard vale para os lugares mais cinzentos que se pode imaginar. Busca-se a topofilia até em endereços, por exemplo, como a ala feminina do Presídio de Tremembé. Lá, ainda que por algumas horas por dia, autoras de crimes hediondos passam roupa na lavanderia comunitária, contam causos de colégio para as amigas e cantam hits de Victor e Léo. Somos iguais. Podemos amaldiçoar o dia em que nascemos por ter de carimbar papeis na repartição em troca de salário; ficar entediado por repetir o mesmo conteúdo para a turma na sala de aula; por fritar coxinhas ou bater martelos por anos e anos, sempre no mesmo expediente. Mas em algum lugar temos de relaxar a musculatura e nos render às peias do desejo. Nas nossas topofilias nos entregamos ao prazer da fala, do afeto e do território – tal e qual o Pequeno Príncipe em seu planeta.

Eu diria que basta descobrir onde fica o espaço de felicidade das pessoas para encontrar o pote de ouro ao pé do arco-íris. É ali que habita um ser humano. Isso vale para o parente que chega às festas de família uma hora depois e vai embora uma hora antes, levando um tupperware cheio dos doces que os primos e tios ainda não provaram. O pior morador do condomínio que seja, creiam, guarda uma centelha de humanidade – a não ser que o médico tenha errado a receita.

Se Sennett e Bachelard ajudam a entender que diacho de equação é o ser humano, o mesmo vale para o sociólogo alemão Norbert Elias. O autor de Os estabelecidos e os outsiders é um observador tão generoso do gênero que vê grandeza no mais reles dos mexeriqueiros. Quando duas devotas trocam as capelinhas de Nossa Senhora na porta de casa e aproveitam para contar a “última” proeza da dona Moema, a ricona da rua de baixo, nada mais fazem do que exercer a função social da fofoca, uma das armas mais poderosas para a organização do proletariado. Na “perspectiva Norbert”, ninguém é autômato passivo nem massa, um mero escravo da máquina de bater cartão. Antes, inventamos, imaginamos e bulimos com quem nos sacaneia.

Acrescento à resposta mais três sabidos em questões de humanidades. O crítico inglês Terry Eagleton e os sociólogos franceses Michel de Certeau e Philippe Lejeune. Eagleton é do tipo que sempre lembra que nesse momento, no vasto mundo que habitamos, alguém pinta a caixa de correio de vermelho – fugindo à mesmice. Pessoas armadas de pincéis tiram tudo do lugar. A humanidade mora na cultura. Certeaux, não muito longe disso, sugere que somos seres humanos quando, sei lá, deixamos um vaso de violetas e um pão de casa na porta ao lado, gentis como nunca. É partidário de que os pequeníssimos gestos colam os estilhaços deixados pela nossa miséria. Unir também faz parte da nossa natureza.

Quanto a Lejeune, dizem que o intelectual guarda relatos, narrativas, poemas escritos por pessoas anônimas, recolhidos de tudo que é parte do mundo. Forma uma biblioteca de invisíveis. É provável que, tal e qual fez a ensaísta norte-americana Susan Sontag um dia – ameaçada pela máquina de moer carne chamada desilusão –, ele procure na voz dos joões e marias mais escondidos o tal do perfume da humanidade. Não se trata de fazer uma apologia à simplicidade, mas de um exercício simples: procurar onde se esconde o “espírito humano”, essa expressão tão antiga quanto perfeita.

Um exemplo? A narrativa do norte-americano Kent Haruf no recém-lançado no Brasil Nossas noites. A história não tem mistérios. Uma ocasião, a viúva Addie pede ao viúvo Louis – morador na mesma rua – que venha dormir na casa dela. Estão sós. Podem conversar até o amanhecer. Tomar um chá. Esquentar os pés. E o fazem, sem pedir licença, para desespero dos que não entendem nada sobre abrir a porta e reconhecer que do outro lado está alguém muito parecido conosco.

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