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 | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Josiane Mayr Bibas, Ângela Duarte e Maria Luiza Mayr são os nomes por trás da Freguesia do Livro – uma das mais festejadas iniciativas em prol da leitura surgidas nas redondezas. Vira e mexe, as empreendedoras sociais concorrem a prêmios, são consultadas e citadas no atacado e no varejo, sempre apontadas como uma boa notícia em meio aos rastejantes índices culturais do país. Longe dos holofotes, contudo, enfrentam uma rotina de estiva – física e intelectual.

Na sala emprestada que serve de QG para a equipe, no Jardim Schaffer, em Curitiba, há tantos livros doados que é comum as mosqueteiras se imaginarem afogadas pelas mais belas páginas da literatura – e também pelas nem tanto. Tudo deságua ali desde que, há cinco anos, Jô e Ângela se despediram de seus consultórios de fonoaudiologia e decidiram atuar em prol da leitura. O que era uma ação caridosa, próximo de um passatempo para espantar o tédio da aposentadoria, virou batente diário, com extensões sábados adentro.

Cada título que chega é higienizado, separado por assunto e analisado. Livro vai, livro vem, a pergunta é sempre a mesma – “a quem interessaria essa obra?” E começa a maratona para fazer o exemplar chegar a seu provável leitor, esse rosto na multidão. Claro, há fregueses habituais da casa. Livros que tratem de animais são empilhados para a soberba poeta Assionara Souza – interessada no tema. Compêndios de filosofia descansam na caixa do estudante Victor Lins, que pediu socorro às ativistas para poder continuar estudando. O resto – e o resto pode chegar a 25 mil livros num ano – é destinado, em embalagens padronizadas, a mais 180 pontos de distribuição, que vão de quitandas, barbearias e brechós às mais vetustas universidades. Também se destinam a bibliotecas nanicas sem verba para um gibi.

Só vale uma intenção: entender a clientela, e lhes oferecer o livro que tanto procuram

Uma loja no Shopping São José, em São José dos Pinhais, fica com parte do estoque, em especial quando a maré de doações sobe e, com ela, o risco de o trio ter de ser resgatado pelo Corpo de Bombeiros. Como se não bastasse, a Freguesia enche de obras geladeiras velhas e grafitadas – a exemplo de uma instalada na UTFPR – e latões lindos que só, ilustrados, deixados à porta de padarias elegantes, de modo que moradores de áreas nobres, como os do Cabral, se sintam impelidos a doar livros a escolas e associações desmilinguidas desse imenso Paraná. Quem rola o latão? As bravas amantes da leitura. Doem-lhes as costas. Os joelhos berram, mas nada que faça de Jô, Ângela e Maria Luiza candidatas ao martírio. Antes, estão destinadas às cátedras – e essa é a novidade.

De tanto falar com leitores e sobre leitores, ficaram afiadíssimas. Enquanto fazem triagem, teorizam o comportamento dos joões e marias que lhes pedem, sei lá, “uma obra capaz de mudar suas vidas”. O resultado desse empenho de radiografar “o homem e a mulher que leem” gerou um conhecimento que, sem exagero, ajudaria a salvar o mercado editorial da avalanche anunciada.

Dá gosto ouvi-las. Sobrou pouco das franco-atiradoras do início do projeto. Hoje, as idealizadoras da Freguesia não fariam feio numa mesa de debates junto a Felipe Lindoso, Galeno Amorim, Marisa Lajolo, Eliana Yunes ou Marta Morais da Costa, para citar alguns dos bambas em leitura do Brasil. Entendem como poucos do “leitor real” – esse sujeito cheio de vontades e contradições, preguiçoso, instável, mentiroso, mas doidinho para reviver ou estrear no ofício do leitor. É o que conta.

Elas entendem com ciência e afeto que essa figura destituída de manual de instruções é bem aquém do “leitor ideal”, diante de cuja majestade a maioria tende mesmo é a colocar o rabo entre as pernas. O segredo é não colocar o “leitor real” na parede– como aquela madrinha que pergunta se o afilhado está usando o presente que lhe deu. Só vale uma intenção: entender a clientela, e lhes oferecer o livro que tanto procuram no imenso labirinto borgeano de prosas, versos e imagens que a humanidade produziu. Qual o método? Por acerto e erro.

Logo no início do projeto, as três perceberam que, caso não achassem o endereço certo para cada obra, ficariam reduzidas à trabalheira de carregar caixas de livros para cima e para baixo, arruinando os meniscos. A disposição de investigar “o que interessa a quem” as colocou na rua. Não passa semana sem que façam visita a escolas, empresas, igrejas, feiras livres – dentre outros espaços de circulação do leitor de carne e osso. As agentes ficaram conhecidas e foram copiadas aqui e ali. Raro um programa do gênero que não tenha um quê de Freguesia, hoje um dos nossos produtos de exportação.

Faz pouco, as patroas sacaram que precisavam dar mais um passo. E deram dez. “Entendemos que o livro sozinho não se ‘vende’. Precisávamos de alguém para criar uma pegadinha, para pescar outros leitores, falando dos livros que doamos”, comenta Jô Bibas. Na prática, as agentes se puseram a identificar, nos pontos de distribuição das caixas, quem são os leitores, digamos, mais apaixonados e que estavam à espreita. Chamam os camaradas para um lero e os ganham para a causa. Bingo. É como se de repente o projeto conquistasse 200 voluntários, sorridentes e febris.

Esse corpo a corpo trouxe a reboque a descoberta de que há uma penca de anônimos batalhando pelo livro. “A proposta de fazer circular obras inspira. Acho que estamos no apagar das luzes de uma época. Tem uma guilhotina na cabeça das pessoas. Incomoda a afirmação de que está tudo no Google. Uma grande parte da população tem medo de como seria um mundo sem os livros”, interpreta. É o caso do barbeiro Evoti Leal, do Campo Comprido, que faz barba, cabelo, bigode e dá dica literária enquanto afia a navalha. Do skatista Chardie Batista – que articula letras e piruetas no programa Manobra Literária. De uma jovem de Fazenda Rio Grande que promove leituras na praça da cidade. Por aí vai.

Permitam lembrar que Jô, Ângela e Maria Luiza agora voam quais seus livros. A Freguesia se espalha como varetas na mesa. Integra-se a um sem-número de redes, com as quais anda de braço dado. O que apronta é de deixar as pernas bambas. Está por trás do Roda Curitiba, sistema de distribuição gratuita de 5 mil livros, doados pela Livrarias Curitiba, dentro de 350 táxis. Arma o Conto Curitiba, concurso literário em parceria com a Lúmen FM. Prepara para o primeiro semestre o Janelas da Leitura, um pequeno festival que vai trazer à capital o expert argentino Mempo Giardelli.

Paralelo, a organização inventou de levar os escritores até os leitores. Mas nada previsível ou escolar. Faz poucos meses, o curitibano Luís Henrique Pellanda foi carregado pelas “freguesas” até o antigo Educandário São Francisco, em Piraquara. Ali, adolescentes que cumprem medidas socioeducativas foram desafiados a reescrever o final da crônica “Sabiá de guerra”, de Pellanda – sobre o menino que guarda um passarinho morto no bolso, na esperança de ressuscitá-lo. Jô conta o que viu e ouviu naquela tarde sem conter a emoção. Recompõe-se. Uma militante da leitura não pode vacilar. Tem pilhas de livros a separar. Pencas de enigmas a compreender.

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