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 | Foto: Irene Roiko – Arte: Gilberto Yamamoto
| Foto: Foto: Irene Roiko – Arte: Gilberto Yamamoto

Tempos atrás, uma amiga me passou o telefone da socióloga Sonia Lafoz. "Você devia conhecê-la", intimou, ao que respondi "ahã" e segui adiante por mais uns quatro, cinco anos, tempo médio de inércia entre os pamonhas. Vez ou outra o número do telefone dela parecia saltar da caderneta, mas nada de acordar. Até que ouvi o barulho das ruas. Precisava falar com alguém que tivesse vivido a passeata dos Cem Mil, em 1968 – quem sabe para um comparativo infográfico, quase científico, capaz de resolver o enigma dos protestos de 2013. "Alô, Sonia? Meu nome é..."

Nunca vou me perdoar por ter demorado tanto a percorrer a distância finita entre a Gazeta e o Rebouças, onde ela mora, em companhia das memórias de guerrilha. São de beliscar. Era a mulher que estava lá. Em 1969, pós "Cem Mil", caiu na clandestinidade, integrando a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Como não estava a passeio, participou do roubo do cofre do Adhemar de Barros. Se você não sabe do que se trata, pecador, três chibatadas leves. Em 1970, integrou a trupe que sequestrou o embaixador alemão Ehrenfred Anton Theodor Ludwig Von Holleben. Só isso.

Sonia passou pela tormenta sem perder a elegância jamais. É divertida, emotiva, inteligente, mas sobretudo uma casual chic. Gloria Kalil passa por grossa perto dela. Fala dos três tiros que levou na luta – um na perna, outro na virilha e um perto das têmporas – como se relatasse, sei lá, uma ida à feira com sua fidelíssima secretária Raimunda, a Rai. "Era nosso cotidiano", diz, para justificar a naturalidade.

Com tom de voz de diplomata em zona de conflito, conta que atirava bem, habilidade que não lhe dava folga. Volta e meia precisavam de seus préstimos para assalto a bancos, algo assim. Não só. Bela e esguia como a modelo Twiggy, simulava michês nas esquinas para roubar o carro dos pretensos clientes, pobres moços – não sem antes pedir desculpas e avisar que levava aqueles Fuscas por uma boa causa.

A revolução equivalia ao chão que pisava. Nascida na Argélia, de pai espanhol e mãe francesa, cresceu exilada aqui e ali até chegar ao Brasil. Tinha 8 anos de idade e observava o pai – antifranquista e comunista exaltado – brigando com moinhos de vento. Aos 18, estudante de Psicologia na USP, mesclou Freud com Marx. Regis Debray na cabeceira. Saíra aos seus, com licença.

Admite que deu sorte. Não foi presa nem torturada. Os companheiros que "caíram", como se dizia, não a denunciaram mesmo quando os "meganhas" lhes mostravam a foto da guria de cabelo "joãozinho". "Mariana? Paula?" Ela era a amiga de Iara Iavelberg, na qual estavam doidos para botar a mão. Além do mais, engravidou. "Acho que fui salva por minha filha", declara, ao dissecar seu exílio no Chile, em 1971, e a fuga para a França no ano de 1973. Só voltou com a Anistia, em 1979. Projetos na área da saúde a trouxeram a Curitiba. Aqui ficou.

Difícil uma pesquisa sobre a ditadura militar que prescinda de ouvir Sonia, a guerrilheira. Já não usa armas – mas fala bem. Pensa escrever umas linhas sobre a experiência, mas nada de repetir o que todo mundo sabe. Quer tratar da rotina nos aparelhos, lugares onde dormiam jovens com nome falso, embaixadores sequestrados e amores difíceis. I love you baby... "As meninas não podiam usar um short. Havia medo de despertar paixões, o que poderia enfraquecer a luta... Mas a gente se amava."

E onde há amor há risos. Esqueça aquela imagem de Ches tensos, esmagando bitucas de cigarro com o coturno. É só uma parte da história. Sonia conta um episódio delicioso – o da plástica no nariz de Carlos Lamarca. O capitão precisava de um disfarce para se safar da repressão. Mas por que diabos, naquele tempo, um homem mudaria o rosto sem levantar suspeitas...? A não ser que fosse gay.

Coube a nossa heroína ensinar ao líder trejeitos dignos do vilão Félix da novela das 9. O despiste deu certo. Lamarca não morreu disso, por favor, avisem o Feliciano, mas de uma outra "doença incurável". Queria um mundo melhor. Sonia avisa que sofre do mesmo mal. Escreveria na própria tumba – "Morri sob protesto". Por essas e outras, deixa de dormir para acompanhar passeatas pela tevê. Anda a mil. Ah, pede que não a julguem extraordinária. É seu normal.

(Esta coluna é dedicada à jornalista Teresa Urban.)

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