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 | Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Pouca gente sabe, mas Dalton Trevisan, The Vamp, não vive apenas de sugar sangue dos pescocinhos lânguidos – até com canudinho, segundo as más línguas. O escritor mais recluso do mundo também faz o bem, sem olhar a quem. Virá o dia – ou a noite – em que saberemos de suas amabilidades. Com os escritores, por exemplo. Há séculos tem quem entregue escritos a ele, para que deguste e plasme uma opinião. Sei de uns tantos casos. Soube faz pouco de Leonor.

Aconteceu na década de 1970. Leonor Demeterco Corrêa de Oliveira se mandou para a Rua Emiliano Perneta – envelope nas mãos. Era ali que Dalton despachava, num escritório das Cerâmicas Trevisan. Não se viram nem nada. Falaram-se via intermediários, o que rendeu à então “jovem senhora” uma indicação para escrever na Gazeta do Povo. A conselho de DT, que sonhava poder fazer o mesmo, adotou um pseudônimo que bem parecia saído de uma novela de Janete Clair – “Francisca Lemos”. A parceria durou uns poucos anos. Muito lhe valeu.

Acabam aqui as confidências sobre o interregno literário de Leonor/Francisca e Dalton/Nelsinho, a pedido dela, debaixo de meu juramento. Seus argumentos são justos: viram-se frente a frente apenas uma vez. Não são próximos, apenas padrinho e afilhada. E ponto. “Dalton não gosta dessa invasão”, encerra, sepultando de vez o mexerico. Além do mais, faz uma data.

O Vampiro completou “Bodas de Caverna” este mês – soma 90 anos e goza de boa forma. Quanto a Leonor, 75 anos, lança na próxima terça-feira o seu primeiro livro – Era uma vez...,reunião de contos e crônicas que editou debaixo da insistência canina de amigos, aos quais devemos agradecer. Até então, a autora tinha sido publicada em raras coletâneas – inclusive no exterior, a exemplo de Erkundungen – 38 brasilianische Erzähler, de 1988 –, mas nada que a retirasse do anonimato, lugar onde faz gosto em permanecer.

Não esperem que Leonor diga impropérios. Teria todo o direito, mas não o fez, para surpresa dos psicanalistas

Justiça seja feita, DT não foi o único mestre da pena a apoiá-la. O poeta do modernismo português Sidónio Muralha, que viveu em CWB na década de 1980, encantou-se com o que leu e pediu a Leonor que publicasse, sem sucesso. Antônio Callado, de quem se tornou amiga, igualmente. Numa das cartas que trocaram, o autor de Quarup lhe disse que o mundo se divide entre pessoas “morredouras” e “vivedouras”. Ela pertencia à segunda categoria. Faz sentido.

Não tenho certeza se o título Era uma vez... guarda alguma ironia com os contos de fada. Talvez. Leonor nasceu em família rica – os Demeterco. Bela e inteligente, recebeu formação à francesa no Colégio Nossa Senhora de Lourdes – as irmãs de São José de Chambery a apontavam como a melhor das pupilas. Conheceu seu príncipe encantado no auge dos anos dourados, durante um encontro da Ação Católica. Ela pertencia à JEC, ele à JUC. Chamava-se Lamartine Corrêa de Oliveira, advogava e tinha brilho próprio – tempos depois, seu nome estaria inscrito entre os que peitaram a ditadura militar no Brasil.

Namoraram por cartas – longas cartas, muitas escritas na barca de Niterói, onde Lamartine morava. Casaram-se e tiveram quatro guris, uma “escadinha”. Em 6 de janeiro de 1967 – Dia de Reis –, a família se acidentou na estrada que ligava Matinhos à capital. Leonor tinha 26 anos e ficou paralítica. Os contemporâneos lembram do episódio como uma peça do destino, dessas que pareciam existir apenas nas crônicas de Nelson Rodrigues.

O poema A arte de perder, de Elizabeth Bishop, serve feito luva a Leonor. Anos depois do acidente, o trânsito lhe levaria ainda um filho e uma neta. Lamartine, o grande, se foi cedo também, aos 54 anos – problemas de coração. Leonor provou tudo isso a bordo de sua cadeira de rodas. Estão juntas há quase meio século, o que não a impediu de criar as crianças, dirigir um Mercury Cougar, escrever para jornal e ter se tornado no passado uma disputada professora particular de redações pré-vestibular.

Era uma vez..., o livro, é a soma de tudo isso, incluindo, claro, as seguidas rasteiras da vida. A experiência da deficiência a levou a lugares e a pessoas que não veria nem em sonhos – ela cita o irromper de aplausos numa clínica argentina, quando um tetraplégico conseguiu levar um garfo à boca. Ou a Babel de idiomas num hospital novaiorquino. A propósito, não esperem que diga impropérios. Teria todo o direito, mas não o fez, para surpresa dos psicanalistas. Quem a viu chorar? Jornalista monstro, tive de perguntar. Nem Lamartine nem os filhos, apenas o monge beneditino pére Phillipe, um dos religiosos que a ajudaram em sua sereníssima jornada noite adentro.

Informações aos navegantes – não chamem Leonor de escritora, ela diz que “apenas lida com palavras”. Acha que o fez com alguma propriedade nos contos Colóquio com Nádia, A língua e O milagre, sobre um paralítico que não volta a andar. É mulher sem afetação, dona de fala pequena e pausada. Lembra a chuva fina. Seus olhos são de uma cor que ninguém diz. Ainda brilham.

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