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 | Foto: Marcelo Elias - Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Elias - Arte: Felipe Lima

Se o doutor Pedro Bloch vivo fosse, publicaria essa na célebre coluna "Criança tem cada uma", da revista Pais & Filhos. Caetano, então com 6 anos, foi com a mãe à Parada Gay. Na volta, encontrou pela rua um coleguinha de classe e contou o que fizera naquela jovem tarde de domingo. No manhã seguinte, levou o troco. "O Caetano é gay" – trovejou o pequeno tirano no pátio da colégio. Ao que respondeu – sereníssimo feito o último Buda: "Eu não sou, mas minha mãe é."

Quem conta o conto é Angelita Thomaz de Lima, 39 anos, a mãe, ainda em graças com a tirada do seu Caetano. Chamada pela diretora, confirmou sem rodeios a sentença do filho. Melhor remédio. O piá talvez não precise um dia derramar um toró de lágrimas no divã do analista. Pelo menos é o que Angelita acredita: as crias devem saber da orientação sexual dos pais. Se não fazê-lo, como sabê-lo?

Para saber se está fazendo a coisa certa, correu atrás de quem entende do riscado, tornando-se uma habitué do Grupo Dignidade, ONG voltada para o público LGBT. Foi ali que cruzou o caminho da historiadora carioca Marise Felix, 53, professora do Colégio Estadual Papa João Paulo I, em Almirante Tamandaré. Tinham histórias muito diferentes, mas danadas de parecidas. Deram de tricotar – aguarde para saber.

Até pouco tempo, a única ligação de Marise com os homossexuais se resumia às ganas de "pular no gogó" dos que discriminavam um seu colega de trabalho. Ele lhe implorava que deixasse quieto. Ela – alguns tons acima – queria saber "qual é o problema?" Foi o que precisou perguntar a si mesma no dia em que descobriu a identidade sexual da filha de 16 anos. Mal teve tempo de responder.

Tão logo, chegou-lhe aos ouvidos que a filha e a namorada tinham sido convidadas a se retirar de uma loja, onde entraram de mãos dadas. Ficou arara – com a loja, disposta a pô-la abaixo. "Se eu brigasse naquela hora, ia brigar o resto da minha vida." Ao forrobodó, preferiu se alistar nas fileiras do GPH – Grupo de Pais de Homossexuais, fundado em São Paulo nos anos 90 pela professora universitária Edith Modesto. Foi a bonança.

No GPH – do qual hoje é representante regional – Marise encontrou mães e pais que, como ela, não sabiam xongas sobre filhos diferentes e suas vidas em segredo. Segurem-se. Havia quem tivesse dado na cara dos seus – seguido de um cinematográfico "na minha casa, não". Quem os tenha posto porta afora. Quem sussurrasse um tolo "é fase". E quem soletre ainda hoje a tragicômica "onde foi que eu errei..." Palavra de ordem: virar o disco.

No GPH, não se paga imposto para sofrer. Desestimula-se especular causas, nutrir culpas, acalentar inquisidores. "A mãe é quem dá o tom na família. Se ela impõe que o filho seja respeitado, é meio caminho andado. Como é que um adolescente vai ser tolerado na rua se o mal começa dentro de casa?", questiona a intrépida Marise. Ela respira e pede uma limonada ao garçom. Comenta que adorou Milk, o filme que deu o Oscar a Sean Penn. Recomenda, a quem interessar possa. Golpeia o copo e volta ao colóquio. "Cansei de ouvir a frase ‘fulana tem um filho que é assim’. Assim?" Lá vem sabão.

Dia desses, entregou-se aos dizeres sábios de um ímã de geladeira.: "O ódio não é um valor familiar". Fez da pecinha um mantra para sanar os intolerantes. "Por que tanto medo? Quem souber a resposta, me conte?" Limonada. O resto é mar: não negar à filha gay nada que reserva à hétero. E querer um mundo melhor para ambas. "Dá para entender?"

A partir de 13 de março, Marise e Angelita iniciam uma nova confraria. Uma vez por mês, vão promover rodadas de conversa com pais homossexuais, com ou sem filhos. Local: "a casa da mãe" – como merecia ser chamado o Dignidade, na Praça Carlos Gomes. Aviso aos navegantes: não é auto-ajuda, sessão de cura nem muro do xororô. É para segredar – e quem segreda sabe. Angelita até brinca: "Esse grupo nasceu do meu egoísmo. Quero dar respostas para o Caetano."

Adulto tem cada uma.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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