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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Não lembro exatamente a primeira vez em que vi um Simca Chambord – meu estranho objeto de desejo. Mas me recordo bem da época em que essa obsessão se manifestou. Foi em 1967, na varanda lá de casa, no bairro do Novo Mundo, quando as tardes duravam uma eternidade.

Dali, minha irmã Clarice e eu víamos passar uma mulher de óculos escuros e cigarro entrededos, a bordo de um cintilante rabo de peixe. Era estranho. Naqueles tempos, a civilização acabava no Capão Raso – embora não fosse bem esse o termo usado para o pobre do Capão –; e não era comum ver senhouras ao volante, quanto mais a 10 quilômetros do Batel, onde, dou um mindinho e a vista esquerda, aquela motorista habitava um chalé à moda enxaimel.

Dedicávamos a ela o olho estalado de quem vê discos voadores. "Caia" – como a mana ficou apelidada – dizia: "Quando crescer vou fumar e usar óculos escuros". Tonguinho, fiz a reboque meu "plano de desenvolvimento para o futuro": "Quando crescer vou ter um Simca Chambord". De onde tirei o Simca, não sei. Mas suponho.

A mulher do Impala rabo-de-peixe devia representar na minha cabecinha oca uma imagem mais esquisita do que a das vizinhas usando bóbis e trajando peignoir. Não era um bom modelo. Além do mais, alguém se referiu àquela verdadeira Jacqueline Kennedy dos arrabaldes com uma palavra deliciosa, hoje em desuso: "sirigaita", cujo sentido me es­­capava, mas coisa boa não era.

Tive de idealizar um outro carro – e não havia outros na minha experiência senão aquela engenhoca com tração nos pés dos Flinstones, o Batmóvel e, claro, o inigualável Simca Cham­­bord. Cheguei a querer um de Natal. Além de bonito pacas, era o automóvel do exemplar tenente Carlos, protagonista da série de tevê Vigilante Ro­­do­­viário. Não bastasse, se Batman porventura viesse ao Novo Mundo, tinha para mim que chegaria num Simca preto com farol vermelho – aquele que eu queria porque queria.

Em vez de um Simca – lá em casa havia um Gordini que, num desafio às leis da física, carregava oito pessoas, todas sem respirar. Era a vida real, o que me fez, nos anos seguintes, ir baixando o preço do meus pedidos natalinos. Da lista de presentes nunca ganhos faz parte uma Caloi azul-piscina, o chatésimo Autorama; um carrinho movido a controle-remoto; um minibuggy e patins, que numa homenagem póstuma rebatizo como "patins de sirigaita".

Em compensação, ganhei todos os brinquedos fuleiros da ocasião – como a bola pula-pula, ridicularizada com honra e mérito pela Phoebe do seriado Friends. Até que num daqueles natais me deram um tênis Bamba. Tinha um solado duro como o diabo e provocava chulé crônico, mas, dizia-se, era resultado da tecnologia da Nasa para que astronautas conquistassem a Lua, o que muito nos orgulhava.

A questão, contudo, era outra: para quem não tinha cruzeiros a torrar, ganhar calçados e roupas no Natal era um presságio de que os dias de criancice tinham acabado. Foi um rito de passagem difícil, mas fiz o melhor que pude. Não processei a Alpargatas nem a Nasa. Ao andar de Bamba, mentalizava que o Conga era muito pior. E, décadas depois, não assaltei uma loja de Simcas de aluguel que funcionava na minha rua. Os velhos carrões serviam para levar noivas à porta da igreja. Fim de uma era.

Hoje, recuperado, me alisto entre os que proclamam o verdadeiro sentido do Natal. Minha máxima é de que os melhores presentes são os que cabem na palma das mãos – exceto meias e lenços, pois brincadeira tem hora. Digo que acima do preço do presente, vale a imaginação.

Foi assim que, anos atrás, encontrei numa livraria o almanaque O mundo acabou, do publicitário Alberto Villas. Presente bom e barato, traz uma deliciosa homenagem aos objetos da infância do autor – da bomba de Flit, ao Vick Vaporub, passando pelas calças Far-West e Topeka. A folhas tantas, eis que encontro as loas de Villas a nada menos do que o Simca Chambord.

Eis a prova de que se tratava de uma paixão coletiva. E de que, aos milhares, nos tornamos portadores de uma "síndrome da infância inconclusa", provocada pelo recalque de um desejo profundo. Nada grave. Cá entre nós, acho que o Natal existe como remédio para a gente lidar com a ambição desmedida de nossos sonhos – sejam eles consumistas ou humanitários. É dia de desejar o impossível. Taí o Me­­nino Jesus que não nos deixa mentir.

Mas chega de conversa fiada. Bom Natal. Não esqueça do meu Simca Chambord. Se não achar, um tênis Bamba muito me alegra.

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