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 | Foto: Marcelo Andrade, Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Marcelo Andrade, Arte: Felipe Lima

O carioca José Álvaro Néia, 55 anos, deve ser um dos poucos caras no mundo capazes de falar ao mesmo tempo de novíssimas técnicas de inseminação artificial e do enterramento avançado de fios de alta tensão. Nem gagueja. Se alguém achar o papo indigesto, ele muda de assunto sem cerimônia: a pulverização de lavouras também lhe apetece.

Não, não se trata de mais um foragido do planeta nerd. Há 18 anos, no melhor do estilo "a mão e a luva", Zé encontrou a profissão para a qual estava talhado – a de tradutor e intérprete em simpósios de agricultura, engenharia, medicina e quetais. É desse ofício que tira seu leque de conhecimentos, sem os quais, jura, seria um sujeito sem graça.

Para justificar o fascínio que sente por sua atividade, recorre às categorias de inteligência cunhadas pelo psicólogo Howard Gardner. "A minha é do tipo integrada", avisa. Gosta de aprender. Já de aplicar o que aprendeu, nem tanto. Precisa interagir, senão seca feito uma avenca. Tem visão big picture – o que lhe permite "fotografar" qualquer ambiente e, de quebra, captar os humores de quem ali está. O homem é um cisco.

Mesmo com todos esses superpoderes, custou a encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris. Formou-se em Engenharia Elétrica na UFPR, arrumou bom emprego na Copel e provou o gosto do bocejo eterno. Tédio. Restou-lhe lecionar num curso de línguas, espécie de exílio voluntário para quem enfrenta turbulências no mundo corporativo. Foi ali que um aluno o chamou para um "bico" de tradução simultânea. Sem saber, ganhara o passaporte para o paraíso, com as despesas do frigobar incluídas.

O pai de José Álvaro era agrônomo das Nações Unidas. Rodou o planeta, levando a filharada a bordo. Os Néias viveram em Gana e Madagáscar, na África e na Itália. Fora as esticadas. O guri cresceu fluente em inglês, espanhol, francês e italiano. Só aprendeu português porque sofria descontos na mesada caso não honrasse a pátria. "Mas moro no inglês", admite, sobre o idioma que usa até para conversar com seus botões.

Olhando para trás, entende que ganhou a profissão que tem no momento exato em que entrou na escola e decorou o verbo to be. "É um prazer", diz, desprezando o sacrifício das horas passadas nas cabines escuras, preso a microfones. Além do mais, é vertendo os conceitos de, sei lá, Deepak Chopra ou de James Hunter – para citar dois dos gurus com os quais trabalhou – que abastece sua curiosidade, cujo apetite é o de um caminhoneiro.

Desconfio que, sem perceber, Néia está escrevendo um compêndio da vida secreta dos tradutores. Defende o "índice cabeças viradas". Se a plateia olha muito para trás, procurando as cabines, xi, vai mal. Se os intérpretes são invisíveis e ninguém agradece, foi bom. Dá dicas: dizer "hammmm" entre uma frase e outra, jamais. Traduzir aquelas expressões que o Lula quase que arrota, como "pau que dá em Chico dá em Francisco"? Sorry.

Zé ama classificações. Desenvolve um rótulo para cada tipo de palestrante. Há os "circulares", os "fragmentados" e os "sustentáveis", termos autoexplicativos para indicar quem demora a dizer a que veio, quem não termina o que começou ou quem chega com o discurso pronto. Há também os "Capes", como se refere a alguns pesquisadores presos aos grilhões da burocracia acadêmica.

Dão preguiça, mas não importa. Seja monótono, difícil, sedutor, cada conferencista merece 100% de concentração. Não tem folga nem para cólica no rim, como lhe aconteceu. "Fui salvo pelo próprio palestrante, que me encontrou contorcido na salinha..." Drama? Esqueçam.

Tudo bem – tem dias e dias. Zé Álvaro bateu a porta da cabine duas vezes. Uma ao servir um afegão que pensava que sabia inglês. Outra ao acompanhar um americano que falava com sotaque do Meio Oeste e mascava fumo ao mesmo tempo. Mas merece perdão – traduziu cada "amável" palavra trocada entre um orador e um ouvinte que partiram para a ignorância. À moda de um lorde, acatou a ordem de um poderoso executivo que pediu para que não polisse os palavrões que dizia, a plenos pulmões, a seus subordinados. Acreditem, na interpretação do impagável José Álvaro Néia, son of a bitch é quase poesia. A pessoa é para o que nasce.

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