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 | Foto: Jonathan Campos – Arte: Felipe Lima
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A historiadora Ana Paula Vosne Martins não passava de uma pesquisadora em cueiros quando "bateu o olho" numa pilha de cadernos velhos, largados para todo o sempre num canto da Casa da Estudante Universitária de Curitiba, a Ceuc. Eram diários. Diários escritos pelas moradoras da instituição nas excitantes décadas de 1950 e 1960, durante plantões na portaria. Ao abri-los, Ana lhes deu existência.

Em tese, os cadernos não continham nada do outro planeta – as plantonistas se limitavam a registrar o entra e sai das gurias. A novidade é que não raro algumas aproveitavam a pena e o papel para narrar angústias, desejos, impressões sobre aqueles tempos malucos que trouxeram a pílula anticoncepcional, a minissaia e aquela canção do Roberto.

Sem se dar conta, as gurias deixaram um impressionante registro de época. Ouro puro para a atenta Ana Paula, que debulhou os alfarrábios da Ceuc, produzindo a dissertação de mestrado Um lar em terra estranha. O texto passou com honras pela banca avaliadora, em 1992. Mas ao contrário da sina de boa parte dos estudos acadêmicos – sepultados nas estantes ou em tristes pdfs – a pesquisa não sai de cena há nada menos do que 20 anos. Isso é incrível.

Ao lado de Clotildes ou Marias, da historiadora Etelvina Trindade,o trabalho é considerado um marco nos estudos sobre mulheres no Paraná. Não há quem se meta nessa selva sem o dever de conhecer as duas obras, quais Bíblias. Um lar..., inclusive, ganhou duas edições em livro, a mais recente este ano, na esteira do centenário da universidade.

Por essas e outras, ao se referirem a Ana Paula Vosne Martins, alunos, vizinhos, conhecidos ou recém-chegados à conversa pronto emendam a frase "aquela que estudou os diários da Casa da Estudante". Ninguém aferiu com estatísticas, mas deve ser o sonho de dez entre dez pesquisadores serem lembrados por um texto escrito com as tirânicas normas da ABNT, sujeito a doutos implacáveis e injustamente nascido com o rótulo de insípido e inodoro.

Não é difícil entender o interesse que Um lar em terra estranha provoca. Tem o efeito de uma sondada na fechadura, claro, nas não só. A autora morou na Casa da Estudante no início dos anos 1980, vinda de Ponta Grossa. Nunca soube dos diários quando lá viveu. Ao descobri-los, viu-se refletida nas inquilinas do passado. Também desejara um dia sair dos espartilhos familiares, formar-se e ter uma carreira. Também experimentara a estranheza de morar em Curitiba. Ainda que vivesse numa época tão diferente de meninas como Íris ou Wilma, algumas das citadas, tornou-se a predestinada para falar de mulheres que enfrentavam barreiras emocionais e sociais do pós-Guerra. "Acho que elas escreviam sabendo que um dia alguém acharia os cadernos". O conteúdo é de babar. Oriundas do interior, as universitárias tinham, por exemplo, medo de ficar mal-faladas – um "grilo" que a geração da autora resolveu declamando versos de Leminski nos botecos do Largo da Ordem. Seguiam horários rígidos. Eram tiranas por limpeza. O mais curioso, carregavam uma obsessão por valores como a lealdade e o coleguismo – bonito à beça. "Queriam fazer da Ceuc um modelo de lar", deduz Ana.

Conservadoras? "Sim, e daí?". Nem toda organização feminina é antessala da revolução. O mais importante é que se acertaram por conta – sem a aporrinhação de maridos, pais, chefes, líderes. Tinham que fazer a casa dar certo, mesmo somando míseros 18 anos. O que escreviam eram saborosos diários de moças. O que faziam para viver sob o mesmo teto, um banquete. Eis o tema.

Depois do episódio na Casa da Estudante, Ana Paula se tornou uma investigadora de todo e qualquer tipo de organização de mulheres. Fala com ciência das associações de mães cristãs às federações de empresárias. Seu intuito é responder a uma dúvida da humanidade – "como é que é" quando elas escolhem estar juntas.

Em tempo. Um ano após a defesa da dissertação, criou o Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR, em parceria com a socióloga Miriam Adelman. Hoje, uma dezena de pesquisadores participa do projeto. Buscam elixires contra a indiferença. A propósito, podem chamar Ana de feminista. Faz gosto. Feminista para ela é palavra que tem encanto, o encanto de um diário esquecido.

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