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Há 20 anos, perdi um cachorro. Era um boxer, chamava-se Pancho e tinha apetite de estivador. Certa feita, engoliu, a seco, uma calcinha caída do varal – sem falar nos sacos plásticos. Um fenômeno da baixa gastronomia. Seu esporte era nos deixar em apuros, impedindo que traçasse, sei lá, um lençol king size . Num dia de poeta trágico, comeu veneno de rato e se foi.

Chorei que nem criança. Pancho tinha sido o meu melhor amigo num momento difícil da vida – simples como isso. Até hoje pontifica minha galeria de cães inesquecíveis. É o único a merecer um porta-retrato na sala. E olhe que tive uma cachorrada. Meu pai me deu o primeiro cão – Lulu, um pequinês – quando eu tinha 3, 4 anos de idade, em 1967. O último – uma rottweiler, Lola, em 2007.

Dia desses, a nova paixão planetária, o papa Francisco, recorreu à linda máxima evangélica de que "na casa do Pai há muitas moradas" (João 14,2) para aventar que os animais podem, sim, ter um lugarzinho no céu. Disse isso para amparar um garotinho que perdeu seu bicho de estimação, mas acabou por emocionar o mundo pet. Lembrei-me do Pancho. À época, para anestesiar a dor de sua partida, passei a fantasiar. Imaginava minha chegada ao Paraíso e o danado vindo ao meu encontro, alforriado das bernes e das pulgas que tanto o escravizavam. Nos meus delírios, rolávamos como dois abobados numa nuvem branca, repetindo juras de amor eterno, agora num lugar livre do risco das calcinhas voadoras.

Em 15 de outubro perdi meu pai. Desde essa data, tenho pensado muito sobre a morte. Revisitei A invenção da solidão, de Paul Auster – em que trata da mecânica das memórias, mas em especial do pai recém-falecido. Me senti "lido" pela obra. Também de Auster, debulhei Diário de inverno – esse sobre a mãe. Procurei conforto em A solidão dos moribundos, de Norbert Elias, do qual saí arrependido por não ter arrancado seu José à força da UTI, para que morresse entre os seus. O homem diante da morte, de Philippe Ariès, tem 800 páginas – vai me consumir horas. Está na fila.

Na tentativa de driblar o luto, tenho me fiado nas velhas lições do catecismo e num curso de Teologia, abandonado pela metade. Em tese, os mortos estão na graça de Deus, o melhor de todos os lugares. O que me levou ao incrível Uma breve história da eternidade, de Carlos Eire, ensaísta fino que investiga como é que chegamos à crença de que além do horizonte existe um lugar... Recomendo. Mas cá entre nós, mesmo cercado das consolações da filosofia e da excelência da fé, gostaria mesmo era de que o lado de lá fosse como uma novela da Ivani Ribeiro. É uma fraqueza infantil, reconheço, movida pelo que João Batista Libânio batizou de "consciência ingênua". Mas deixe quieto: o folhetim tem lá sua serventia.

Adoro um texto do cineasta Walter Salles, no qual conta a visita que fez a Aracataca, a cidade que inspirou a Macondo de Cem anos de solidão. Mal pisa no vilarejo colombiano, sente no ar o cheiro da goiaba e vê uma jovem seguida por borboletas. O que nos livros de Gabo vira o tal do realismo fantástico, ali é rotina. Moral: só conseguimos imaginar aquilo que vimos. Vale para o Alien – que não passa de um bigato gigante. Vale para a vida eterna. A gente bem que se esforça para transcender. Racionalizamos que a morte é como um canhão de luz, desses de show de Ana Carolina, nos cegando, e pronto, chegamos. Mas na hora do "como será que é?", a danada da mente nos envia a foto de um cemitério Jardim da Saudade, mas sem muros, com gente andando para cima e para baixo sem hora para o almoço ou cartão para bater. Algo como um domingo de sol no Parque Barigui. É o que se pode arrumar.

Ando me permitindo esse passeio. Faço de conta que desci no destino final – só que de sapatos. Essa mania de fazer a gente embarcar descalço é baixaria. Corro feito doido e encho meu portuga de beijos e abraços. Rolamos nas nuvens. Depois me passa um sabão, por eu ter despachado todas as tralhas que ele guardava no quintal. Viu tudo lá de cima – bem que desconfiei. Por fim, seguimos eternidade adentro – os três: pai, filho e o sereníssimo Pancho in the sky, claro. Camarada, o cachorro fez companhia pro velho na minha ausência. Papa Francisco sabe mesmo das coisas.

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