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 | Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O Centro de Curitiba abriga pelo menos três pensões de haitianos – uma na Rua do Rosário, 187; outra na Rua Jaime Reis, 40; e uma nova, num prédio avariado na esquina da Praça Tiradentes com a Rua Cruz Machado. A tentação de conhecê-las é tamanha. Motivos, de sobra.

As “casas de pensão” habitam o imaginário brasileiro. A literatura e “a vida como ela é”, não nessa ordem, sempre se ocuparam de alimentá-lo. A começar pelo livro O cortiço, de Aluísio de Azevedo – cenário do “Bota Abaixo”, projeto urbanístico que varreu do mapa as sub-habitações cariocas do século 19. Some-se Pensão Riso da Noite, sucesso de José Condé, que na tevê originou a série Rabo de Saia. Clarissa, a heroína púbere de Erico Verissimo, debuta para a vida na pensão familiar de sua tia Eufrasina. As meninas, de Lygia Fagundes Telles, são moradoras de um pensionato de freiras.

Mais? Pensões são endereços ficcionais para Jorge Amado, José Lins do Rego, Nelson Rodrigues, além de pasto de toda sorte de autores de folhetim. Não há melhor lugar para retratar situações em que os diferentes não só moram juntos como se cruzam na porta dos banheiros.

Não por menos, Gaston Bachelard fez dos espaços de habitação uma metáfora para todos os paladares. Seu Poética do espaço é um vasculhar de gavetas, cofres, armários e quartos, esconderijos domésticos de nossos desejos mais universais. Para traduzir esse cosmo em miniatura, cunhou termos como “o conforto da caverna” e “o devaneio da cabana”, perfeitos para resumir o que acontece quando passamos a chave na porta do lugar onde moramos. Ali habitam a imaginação e os sonhos.

  • Crianças da pensão de haitianos do Centro estudam na Escola Municipal Vila Torres, no Prado Velho.
  • Pensão tem três andares, um anexo, e c erca de 25 quartos. Pequena parcela dos moradores é brasileira.
  • Os amigos haitianos Max Marcelin e Jesula Cadet, com o filho: em busca de emprego e uma casa alugada.
  • Pátio serve de campo de futebol. Local fica ao lado de restaurantes da Praça Garibaldi.
  • Jésumene e o cozinheiro Seraphin, moradores do anexo do quarto andar, e os filhos: sonho pela metade.

A “Pensão Haiti” da Rua do Rosário ocupa um casario eclético, do início do século 20. Os paralelepípedos, o jardim interno, as divisórias de madeira – tudo em azul piscina – invocam as Antilhas ou o Caribe. Dia desses, espiei pela porta aberta e vi uma jovem negra fazendo um solo triste, em créole. Mas me tranquilizam: há noites embaladas pelos sensualíssimos kompa e zouk.

Soube que a hospedaria vai encerrar o expediente. A crise econômica a tornou inviável para o senhorio, às voltas com os aluguéis atrasados e as contas de água e luz. O desemprego castiga a comunidade haitiana. Muitos já arrancam os cabelos, e não escondem as vísceras, como se pode perceber ao subir os quatro lances de escadas da outra “Pensão Haiti”, a da Rua Jaime Reis.

A hospedaria tem três andares, um puxadinho no telhado e pelo menos 25 quartos. É pintada de azul vivo, dando igualmente ares tropicais a essa cidade sem mar. Os corredores abertos para um pátio são tomados por roupas no varal. As sete crianças que ali vivem jogam bola no quintal, indiferentes à rapaziada que frequenta os bares da Praça Garibaldi, logo em frente. No fim das tardes, a “Pensão Haiti” cheira a banho tomado e a comida nova – feita em fogõezinhos de duas bocas. Nas tevês de 20 polegadas os moradores assistem a programas evangélicos ou ao noticiário policial. Os sons dos canais se misturam ao dos pequenos em busca de um gol e ao da conversa dos adultos na sacada.

No fim das tardes, a “Pensão Haiti” cheira a banho tomado e a comida nova – feita em fogõezinhos de duas bocas

O casal Max Marcelin e Jesula Cadet fala dos dias ruins – “não há emprego para ele e ela está grávida”. Depois riem das estripulias de um dos filhos. Dois andares acima, outro casal – Jésumene e Seraphin (foto), pais de quatro filhos – também faz balanço. “Precisamos de uma casa”. Contam que fazem festas. Que a pensão é um pedacinho do Haiti, mas que no momento andam sem cabeça para devaneios. O salário de cozinheiro do marido não paga as despesas. Sobra pouco para mandar para os familiares na ilha. Com as mãos em prece, perguntam quem há de lhes ser fiador.

Seis brasileiros dividem os corredores com os estrangeiros. Sabem das dores que padecem, lamentam a política manca do governo. Relaxam. Norton, um deles, aprende francês com os vizinhos. Bruno, barman vindo de Sorocaba, se diz um homem “sem parada”. Morou em várias cidades, o que o gabarita para afirmar que “perto dos haitianos tudo fica mais feliz”. Pensa em se mandar para Nova York – um dos novos amigos avisou que vai a tiracolo.

No térreo, Rony Elicien Augustin faz das tripas coração para não ser enredado pelas lamúrias. Aluga dois quartos na “Pensão Haiti”, um para dormir, outro para costurar nas horas vagas, quando não está na camisaria em que se empregou. É alfaiate. Depois de quatro anos de Brasil, conseguiu visitar a mulher e os sete filhos. “Estava doente de ficar longe deles.”

Os êxitos de Rony são um consolo, o que o obriga a ser o ombro dos desiludidos. Dá boas palavras, mas em silêncio alinhava preocupações de sua gente. “Conheço 15 haitianos que voltaram”, contabiliza. Prevê noites sem cantoria na “Pensão Haiti”. Sonhos de casa dormem nos quartinhos de aluguel.

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