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 | Foto: Albari Rosa / Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Foto: Albari Rosa / Ilustração: Felipe Lima

Uma redação de jornal é uma sala fechada com telefones tocando por todos os lados. É a morte. É o chão. É o carro enguiçado. No rosto um desgosto. É João, é José. Pois é, dia desses era a dona Emília na linha: "Alô, sou a mãe do Cláudio Melo. Você conhecia meu filho..." Conhecia. Soube por ela – em meio aos Graham Bells que berram às sextas-feiras – da morte de Cláudio, 23 de junho último. Tinha 53 anos, foi derrotado por um câncer e era – acima de tudo – um cara legal.

Lembro de quando o conheci, há uma década. O telefone, sempre ele, tocou. "Alô, sou o Cláudio Melo e vou fazer uma performance na rua. O jornal pode cobrir?" Podia. Marcamos uma entrevista para sair publicada – coincidência – numa sexta-feira. A conversa valeu por uma tarde da rede. O homem miúdo de fala pouca e jeito de passarinho tinha o que dizer. Soube que ganhava a vida como médico, que tinha trocado a camisa de força da psiquiatria pelos florais da homeopatia, que flertava com as artes plásticas e tudo mais. Me senti a própria pamonha de Piracicaba.

Cláudio fazia o tipo que assobiava e chupava cana brincando de embaixadinhas. Quando não estava de jaleco branco – vencendo as filas do SUS como se fosse um emissário da ONU junto aos curdos – estudava sax, fotografava, cozinhava, escrevia críticas de arte e viajava tanto que, decerto, nem desarrumava as malas. Seria preciso chamar o contador do rei Abdullah para calcular as milhagens que acumulou. Bastava encontrá-lo para babar de inveja ao vê-lo falar de seus diários de bordo – ia a Veneza, a Londres ou a Tóquio como quem fazia lanches na Praça da Ucrânia.

Estando em casa, estava sempre de saída, principalmente quando havia vernissage na cidade. Nessas noites, punha-se bonito num paletó italiano e lá se ia, trajado para o melhor papel que viveu – o de satélite das artes plásticas. Explico: embora fosse do ramo, Cláudio gravitava no circuito artístico como se olhasse de fora aquele que considerava o melhor dos mundos. Custou a encontrá-lo em sua curta maratona sideral. Mas uma vez identificado o objeto de desejo, correu para o abraço.

Foi ainda menino, em Mandaguari, que ele e o irmão mais velho decidiram ser médicos, provocando a diáspora da mãe viúva e cinco filhos rumo à capital. Já formado, começou a pintar e encontrou sua turma – turma que mais parecia saída de uma sessão de happenings da década de 70. Ninguém ali era convencional, inclusive o próprio.

Numa de suas performances, Cláudio ficou rodando em sentido horário, sobre uma toalha de plástico, em plena hora do rush na Avenida Paulista. Mais homeopático, impossível. De outra feita, empunhou a caveira de Hamlet. E calou fundo na tradicional Lapa ao aparecer com uma camisa apinhada de fitas vermelhas, costurada pela artista Bernadete Amorim. "Aquilo era sangue, sangue", emociona-se a mulher.

Mesmo de férias, fazia das suas. Sem exposição, sem consulta, sem sax, pegava a filmadora e registrava suas próprias mãos ao vento, tendo ao fundo o céu de Paris ou de uma vilela qualquer. "Era livre", resumem os conhecidos, do amigo Gérson Persegona, passando por Bernadete e pela web artista Mariana Branco – para citar duas aquarianas de sua legião zodiacal.

Cláudio, aliás, recorria aos astros para explicar seu paladar oceânico pela novidade. "Era encontrar com ele e viver algo diferente" – lembra Mariana, enquanto conta a aventura que foi divulgar uma mostra coletiva, com cinco dentro de um carro, feito um bando de guerrilheiros armados de coquetéis molotov.

Tenho impressão que há uma semana, em museus, galerias, cafés, consultórios e cozinhas de Curitiba, há sempre alguém narrando uma historinha de liberdade vivida ao lado do Melo. A própria Emília o fez. Numa ocasião, o filho se trancou no quarto para tocar sax. Feito uma meninota de Alpinópolis, onde nasceu nas Alterosas, grudou o ouvido na porta e ficou escutando em segredo. Naquele dia, ele não soltou um Pixinguinha a gosto, mas "Jesus, alegria dos homens", de Bach. Foi a última vez que o ouviu tocando.

Restou uma certeza – o filho médico tinha lhe saído um artista. Um ano depois, ao prepará-lo para os funerais, não vacilou: vestiu-o com a roupa que usava nas vernissages. Era como ele gostaria de entrar no céu onde, é o que dizem por aí, brinca com as mãos curtindo mais uma de suas viagens. O Cláudio sabia das coisas.

Que fique assim firmado no Livro das Vidas.

José Carlos Fernandes é jornalista.

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