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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

É curioso o fascínio que microfones exercem sobre as pessoas, mesmo as mais tímidas. Sabe-se lá que mistérios tem ouvir a voz ampliada, o sotaque em bom som, a dicção de outrem descendo pelas correntes nervosas da multidão

Quando eu era criança, aqui na Água Verde, gostava de observar a "turma da esquina", como era chamada a trupe que se reunia para conversar e curtir um iê-iê-iê na Brasílio Itiberê com a Ângelo Sampaio. Sus­­peito que pelo menos três gerações fizeram dessa insigne curva da Baixada Atleticana uma tribuna para discutir futebol, política e, como não, a vida alheia – matéria-prima farta neste velho enclave italiano, um banhado onde os expatriados da Colônia Cecília criaram galinhas, jogaram bocha e sobreviveram a rios de cerveja feita em casa.

Bom – com o tempo, "esse tirano", a Ângelo perdeu os paralelepípedos e se converteu numa via rápida sabor chuchu, bem a gosto dos tecnocratas que andam sugando o coração da cidade. Não há mais turmas do bairro, só se for lá na Barreirinha, né. E para não dizer que não falei das flores, no exato local onde tanta rapaziada dobrou a esquina para a vida adulta impera um divertido anúncio da Academia Monster e um bar onde se ouve boa música. O pulso ainda pulsa.

Há 40 anos, bem lembro, a ala masculina da "turma da esquina" tinha de caprichar para ganhar migalhas de atenção das gurias – que só se aproximavam em bandos, de braço dado e pouco se demoravam, sob risco de cair na língua das Teresas e Clotildes. Contava pontos para eles ter um cabelo à moda Bee Gees, mas principalmente trazer um gravador de tiracolo, com microfone externo. Presumo que muitos amores nasceram do simples apertar do "Play" e do "REC", seguido de desculpas como "não grave, eu falo ardido...", "odeio meu sotaque – leitE..." É curioso – mesmo a mais empacada das mocinhas da Colônia Dantas era nocauteada e se entregava aos prazeres do microfone feito uma desinibida da Riachuelo.

Por sofrer de pânico (seguido de convulsão com babas) diante de amplificadores de som, virei observador do fascínio que esse objeto diabólico desperta. Exemplos a rodo. Repare, no bingo da paróquia, o olhar esbugalhado daquele que canta as pedras: "Dois patinhos na lagoa"; "a idade de Cristo". E no jantar de final de ano da firma, então. O amante do microfone faz manha, agradece os que dizem ter ele voz de radialista da Guairacá, cospe o chiclete, ensaia uma dancinha e aceita dar uma mensagem "rápida", enquanto a comida esfria.

Em formaturas, idem. Nin­­guém supera o mestre de cerimônias. Ele quer lágrimas. Sua tara é o "agradecimento a Deus", com ênfase na crase que não existe, imitando a voz do Todo Poderoso em Os Dez Mandamentos e destruindo, em segundos de improviso, 2 mil anos de sã Teo­­logia.

Culpa do microfone, a mais narcisista das traquitanas eletrônicas, arma dos ditadores, ainda que ganha-pão do vendedor de sonho. Sem ele, simpósios acabariam mais cedo. Ali, o mesmo roteiro se repete na plateia. "Tuf, tuf. Alô-alô... [pigarro] Eu só queria fazer uma pequena colocação..." interfere o anônimo prestes ser possuído pela volúpia de ser ouvido decibéis acima do normal. Precisará de 15 minutos para sair do transe. Microfone vicia como o crack. E depois da invenção dos karaokês, as recaídas se tornaram mais frequentes.

Mas respeitemos. Microfones são extensões da voz, diria Mc­­Luhan. Uma variação da fala, a maior das potencialidades humanas, defenderia Bachelard. Tor­­nam audíveis a criatividade da mente, alertaria o neurocientista Oliver Sacks. Sem esses aparelhos, convenhamos, seria a falência do comércio. Imagine a Rua XV sem seus garotos alto-falantes. "Victoria’s secret. Mais beleza para vo-cê", anuncia o menino franzino. Ele está apaixonado pela própria voz saindo na caixa, quem há de condená-lo.Tempos atrás, acompanhei o caso de uma amiga às voltas com uma fossa tão medonha que perto dela a cantora Maysa pareceria uma animadora de programa infantil. Vivia se candidatando a uma vaga no IML. Curou-se ao virar contadora de histórias. Sua voz lhe serviu como Fluoxetina. Pudera. Era o som que seu corpo suicida conhecia melhor. Quando a dava ao microfone, ai, um pedacinho do céu. Ela se tornava linda e potente – o rosto na multidão. Vai ver que é isso. A "turma da esquina" sabia das coisas.

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