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 | Foto: Antonio Costa / Arte: Felipe Lima
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Tempos atrás, uma moça à beira de um ataque de nervos assombrou o ponto de táxi da Meia Pracinha do Batel. Não, não era a Loira Fantasma. A guria tinha uma entrevista dali poucos minutos e se dizia sem dinheiro para a corrida. Céus, acudam. "S’imbora", ouviu de um chofer miúdo – Elso Fagundes Correa, 50 anos. Semanas depois, "milagre", a passageira esbaforida reapareceu – com o crachá do novo emprego, gozando da alegria dos registrados em carteira. Quitou os atrasados e deu gorjeta àquele que tomou por um mensageiro divino.

Elso não se vê um taxista em pele de anjo, mas acredita que em seus 25 anos de boleia tem livrado muita gente de perrengues. É o que lhe mantém a postos, inclusive. Gostaria de ser presbítero da Assembleia de Deus em tempo integral. Mas sempre que entra um novo passageiro para sua galeria de aflitos, pimba, fica a suspeita de que o Altíssimo lhe pede mais uma temporada no taxímetro. "Para onde vamos?"

O ritual se repete: de bico fechado feito um trapista, Elso fica à espera de um sinal enviado do banco de trás. Precisa se mortificar, afinal é um falante incorrigível, capaz das sinapses mais mirabolantes. Num minuto, conta da mãe, Maria, que acaba de fazer 105 anos; do shopping do Salomão Soifer; de João 3, 16 – seu versículo predileto –; da senhora gentil do 499; e informa pelo menos três vezes que não tem troco para R$ 50.

Foi assim – calado – que atendeu certa vez uma cliente sorumbática, blindada por imensos óculos escuros. Até que uma lágrima escorrida serviu de brecha. Elso pediu licença e a presenteou com uma parábola da águia que foi parar num galinheiro – uma espécie de libelo sobre o que foi reservado para cada um de nós.

"Toquei a alma dela", garante, avisando que já redigiu 70 dessas pequenas sagas vividas a bordo de seu laranjão. Sonha vê-las reunidas num livro, para o qual já tem um nome: Reflexões de experiências vividas dentro de um táxi. Confesso que achei o título meio emplumado, mas o autor tem lá suas razões. "Sei de taxista que inventa coisas. Eu não", avisa, lá pelas tantas de nossa conversa atropelada.

Sim, atropelada. Os táxis funcionam como "centrais de atendimento ao público desgovernado". Não há sossego. "Onde fica a tabacaria?", gritou uma da janela de um Fox. "Como faço para chegar na Cohab?", queriam saber duas pedestres, que receberam as dicas e seguiram confiantes, para o lado errado.

Elso diz que responder é mole. Pior mesmo são os dramas a ruas expostos. O mais comum? Gente penando atrás de vaga em hospitais. Naquele dia mesmo, vira uma cena digna do Profissão Repórter: diante de mulher com filho em febres, e com atendimento negado, pessoal da sala de espera fez uma vaquinha para pagar um táxi à pobre. "Não me falem mal de curitibano. É reservado, mas gente boa", proclama fazendo eco na Rive Gauche e na Rive Droite da Pracinha do Batel.

Sugiro que não tomem Elso apenas por um missionário dado a fábulas. É também um arauto da cultura. No seu carro há uma pasta com reproduções de fotos antigas da capital. O efeito é bárbaro. O passageiro olha uma avenida pela janela e pode conferir no álbum como era o lugar em tempos idos. Está lá a Rua Aquidaban tomada de Buicks e Mercurys saídos de algum filme de gângster. Hoje, é uma sem graça Emiliano Perneta.

Se com seu cinematógrafo caseiro o taxista nos conduz à Curitiba da era paralelepípeda, pelas palavras nos leva às margens do Rio Jordão. Enquanto falávamos, cheguei a imaginar Jesus atravessando a Carneiro Lobo. Tive saudades da pracinha. E fiquei no maior dilema sobre ser ou não ser uma galinha. Cocoricó, eis a questão.

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