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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Levo muito corridão dos mais velhos, ao pedir entrevista. Quando conto, há quem duvide e faça pouco. Percebo que para esses, os idosos são a rigor fofos vovôs e vovós, sempre prontos a nos enlear com suas camisas de flanela, debaixo do suave odor da alfazema. Sinto informar que não. Na lista de candidatos a esta coluna figura uma centena de homens e mulheres da terceira idade. Mais de uma dezena deles já soltou os cachorros atrás de mim. Pelo menos um ameaçou chamar a polícia. Um outro não me deixou passar do portão para dentro. Foi o que mais doeu.

Cabe a mim entender por quais rios correm essas veias amargas. Acho que cheguei a uma resposta. Parte da resistência dos velhos é nossa culpa. Os mais vividos sacaram o que esperamos deles e nem sempre estão a fim da brincadeira. As fantasias que alimentamos incomodam. Queremos que cumpram o papel de doces, nostálgicos, assexuados, infantis e engraçadinhos, quando na verdade têm ressentimentos a lhes curvar, pouco dinheiro no bolso e lancinantes dores nas costas. Sem falar na proximidade com a morte, visita que driblam pondo vassouras todos os dias atrás da porta.

Uma inspiração para lidar com a terceira idade é o livro Memória & sociedade: lembranças de velhos, da historiadora Ecléa Bosi. Um clássico. Confirma que os idosos são, sim, hábeis em lembrar. Que gostam do posto de guardiões do passado, mas detestam a domesticação geriátrica. Pô, essa turma tomou chuva. Pulou fogueiras. Sem essa de gugu-dadá vovô.

Ouvir aquele tatibitate "oi, seu João, a pressão está 13 por 9? Tem de se cuidar..." deve ser das frases mais irritantes desde o pito do bedel, nos idos do gimnasio, quando podiam correr pelos pátios a bordo de alvíssimas meias três-quartos. Ponha-se no lugar deles. Você vai se sentir um móvel de antiquário – bem talhado, mas que não cabe na sala.

Como a imprensa se mostra pródiga em explorar o clichê do "vovô objeto", é contra os jornalistas que velhinhos unidos apontam sua metralhadora cheia de mágoas. Legítima defesa: estão se protegendo da fórmula a que tentamos reduzi-los. Foi contra essa baboseira que uma mulher de mais de 80 anos me falou da atração que sentia pelo marido. "Pele..." E teve o velhão, do asilo, que falou da malandragem, sua loucura de mocidade. Faria tudo de novo, disse, com a boca cheia.

Tempos atrás, indiquei uma amiga para uma reportagem de tevê. Aceitou, em atenção, mas me fez garantir que não apareceria na matéria como "a coroa solitária que cuida de cachorros". Jurei que não, "imagine", mas foi batata. Colaram-lhe o rótulo. Outra rotulagem, não menos infame, é a do vovô hiperativo, que manda bem no triatlo e ainda dá seus pulinhos no bungee jump, como se o inclemente bico-de-papagaio fosse ficção. "Sou velhinho, me deixem", sugeriu o educador Rubem Alves ao se aposentar. Queria usar chinelos, caminhar devagar de mão dada com dona patroa, empanturrar-se de bolo de fubá. Só faltou pedir para não lhe torrarem o saco.

O velho é de fato o melhor personagem da imprensa, o dono da história. Rostos enrugados são mapas, como disse, sobre si mesma, a magnífica Ingrid Bergman. Justo por isso, as negativas frustram tanto. A natureza tem seus imperativos e sepulta narrativas incríveis a cada segundo. Sempre que vejo aquela casa rosa choque, de madeira, da Avenida Getúlio Vargas, volta o vazio do papo que poderia ter sido e não foi: a nonagenária que ali morava me botou para correr. O mesmo sentimento se repete ao passar pela Kennedy, na frente de um armazém das antigas. Ainda dá para escutar o passa fora que levei. Devia ter suplicado, de joelhos. Timidez é uma bosta.

Uma das estratégias válidas nesses casos é contar com a ajuda dos vizinhos. Foi graças à mediação de terceiros que consegui tornar pública a incrível amizade de um professor com suas ex-alunas por mais de meio século. Em outra ocasião, um leitor convenceu um casal prestes a festejar bodas de brilhante a falar. As negociações foram dignas do Itamaraty. "Não aconteceu nada nos últimos 70 anos", apressou a veterana, em descompasso hormonal, pedindo para encurtar a prosa: tinha mais o que fazer.

Até que se rendeu. Nunca vou esquecer sua narrativa sobre a tarde em que conheceu seu amado, na Praça Tiradentes; o namoro pudico na janela – num sobrado da 24 de Maio; a criação dos filhos no bairro Seminário, entre outros lances de sua longa jornada cotidiano adentro. Aqueles dois velhos sabiam o que havia depois do the end, mas achavam que não interessava a ninguém. Hoje em dia, afinal, só o extraordinário importa. E eles se sentiam ordinários. Eis o ponto: o culto à juventude e aos grandes feitos é cruel com os velhos. Eles nos devolvem o desaforo, rosnando. Bem-feito pra nós.

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