• Carregando...

Eu penso na babá. Dentre todos os atores em cena diante de mim, as centenas de figurantes que orbitam ao redor deste lago gelado, é nela que eu penso. Não me entendam mal, por favor: ela não é bonita, e mal tem idade para ser bonita. Apenas tem um jeito de estrela, e caminha como se fosse a protagonista de uma íntima superprodução. Eu só a assisto passear.

Mas no que pensa ela, essa babá tão moça, enquanto dá suas voltas no parque, atrás de uma criança que a cada dia experimenta uma nova orfandade, ao menos nos horários comerciais? E quanto ela ganha para manter viva e segura a sua cliente, e impedi-la de cair na água, na boca do jacaré mítico que ali, há tantas e tantas gerações famintas, espera por uma chance, só uma, de engolir o Barigui inteiro?

Pobre menina, condenada a ser o rabo de outra, menorzinha. Será o amor, e não a grana, a força que a movimenta, que a faz correr no parque, a reboque de uma criança tonta? Amor pela carne dos outros, isso a gente conhece, e pela carne tenra especialmente — aquelas folhinhas mais frágeis da alcachofra, o roxo suave de seu coração, quem não gosta?

Mas, vem cá, isso não é crime? E criança, será carne? De que é feita uma criança? Acho que é isso que a babá se pergunta: o que ela ama na menina que lhe coube? O projeto de patroa sob o seu jugo? O mesmo olhar do cachorrinho que ganhou na infância, mas a viatura passou por cima e ninguém parou para socorrer? A própria criança que ela era, lá atrás, no século passado, mas que não deixaram vingar? Ou a boba suspeita de ser um anjo na Terra, uma criatura com uma missão, e jamais essa babá de uniforme branco e sem graça, essa mãe postiça, de aluguel, paga para não deixar morrer uma esperança, tão tênue quanto ela?

Pois se o jacaré saltasse em seu caminho, se emergisse da neblina sobre as águas do Barigui, disposto a devorar o mundo, a começar pela criança, o que a babá poderia fazer, de que armas disporia, de que palavras e argumentos? O que diria ao jacaré em defesa de si mesma e da vida sob a sua custódia?

Mas não, o jacaré não vem, sorte nossa, até agora nunca veio. Talvez esteja congelado lá embaixo, embora digam que sua vinda é certa e só nos resta esperar, paciência. A babá espera, mas, assim como eu, torce contra. E por isso conclui que seu patrão não é bem o pai, e nem a mãe, daquela menina. É o jacaré, ela já entendeu, é o jacaré no fundo do lago gelado. Acho que é nisso que ela pensa agora, enquanto orbita ao redor do parque: na infinita generosidade daquele grande jacaré submerso.

Mas, e ele? Em quem estará pensando?

Dê sua opinião

O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]