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Minha mãe ainda era pequena. Um de seus tios havia acabado de morrer, e cada menina de sua casa ganhou um vestido preto e branco para o velório. Como roupa nova por lá era artigo raro, o presente acabou alegrando minha mãe. Coisa de criança. Só que a culpa bateu forte. Na época, luto era dor indisfarçável, e não se admitia qualquer relaxamento. Os homens ficavam sete dias sem se barbear ou arar a terra. Às mulheres, porém, não se permitia o luxo do descanso, nem o abandono higiênico. Sua função era sofrer em público, sem descuidar das visitas.

No guardamento daquele tio, o que mais marcou minha mãe foi a imagem da viúva. Ela usava seu melhor par de brincos, mas o ouro da joia estava coberto por um paninho negro. Não sei se o revestimento foi invenção dela, ou se era um costume já em desuso. De todo modo, aqueles brincos proibidos de brilhar nos sugerem que também pode haver ostentação na austeridade e nas interdições.

Lembro de uma antiga tradição, cuja origem ignoro, que aconselhava aos vivos não enterrarem seus mortos em trajes caros, portando dinheiro, pedras ou metais preciosos. A posse desses bens dificultaria a entrada das almas no céu, e até um sapato sujo poria a perder um bom projeto de salvação. Nesse sentido, os ladrões de túmulos, que aliviavam os defuntos de seus dentes de ouro, prestavam às suas vítimas um serviço indispensável.

A única criatura inumada por mim que cheguei a amar foi meu cachorro, o único que tive

Fato é que temos a mania de ornamentar nossos cadáveres, enfeitá-los com flores, decorar e faxinar suas lápides. Dizem que este cuidado já pré-histórico com os mortos foi uma das primeiras maneiras que nossa espécie encontrou para demonstrar seus afetos. Os velórios bonitos teriam marcado a estreia do sentimento amoroso na humanidade. É possível.

Li, certa vez, sobre uma tumba de 10 mil anos descoberta na Dinamarca. Lá dentro, dois esqueletos descansavam. Vestindo uma túnica ornada com inúmeros dentes de veado, uma moça jazia ao lado do filho recém-nascido. Apesar da idade, o bebê, numa atitude teatral e viril, segurava uma faca de sílex, embora dormisse sobre uma suave asa de cisne. E é dessa asa que nunca me esqueço, esse berço de penas para um bebê morto.

Nesta vida, já enterrei muita coisa: peixes de aquário, sapos, camundongos. Besteiras de guri. Mas a única criatura inumada por mim que cheguei a amar foi meu cachorro, o único que tive. Na verdade, uma cachorra chamada Babucha.

Quando a coloquei em sua cova, numa rua sem nome do Capão Raso, onde até hoje crescem chuchuzeiros e trombeteiras, pensei que seria correto enterrá-la com seus pertences. Apanhei sua coleira e sua corrente, mas logo mudei de ideia, finalmente me dando conta do horror que emanava daqueles objetos de submissão, agora inúteis.

Sim, a morte da Babucha me fez entender o quanto a ofendi, e o quanto de respeito e liberdade eu ainda devia a ela. Sua morte não era somente aquilo, uma carcaça de 30 quilos num fundo de buraco; era também as grades de seu canil desabitado e o vazio de sua casinha num canto de jardim. Verdade é que nunca me recuperei do amor que senti por aquela cachorra, um amor que eu, menino, desperdicei.

Não, eu não soube providenciar, para ela, nenhuma asa de cisne. Por isso, quis sepultá-la sem suvenires da minha passagem por sua vida. Colhi um punhado de flores brancas de trombeteira, grandes, e as joguei na cova. Meu pai e eu a enterramos, minha irmã caçula acendeu uma vela e duas décadas e meia se passaram. Quando alguém, um dia, aparecer por lá com suas escavadeiras, para revolver a terra que comeu minha velha cachorra, e novos shoppings e condomínios se erguerem sobre o seu túmulo, sei que não se encontrará nada, nenhum sinal, nem dela, nem do meu amor por ela.

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