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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Esse menino comeu fermento. Uma colherada ontem à noite, antes de deitar, e acordou assim. Não adulto, apenas crescido. Onde dormiu, não sei. Aposto que entre os manacás, na entrada de lá do Passeio. Aliás, os manacás são como certas crianças, perdem as flores, mas não a figura de fragilidade. Esse menino, por exemplo. Parece uma árvore desfolhada. Reflexos do fim do verão, de mais uma quaresma que termina. Resta saber que ressurreição se anunciará, entre nós, nos dias que se seguem.

Enrolado num cobertor de feltro, o menino arrasta suas raízes. Carrega uma sacola de supermercado. A caminho do banheiro público, vê a velha carrocinha, e aquilo o fascina. Está sempre ali, estacionada, a caminhonete branca da Guarda Municipal. Na carroceria, um arranjo sinistro, jaulas empilhadas e vazias, cadeados sem uso. Um letreiro nas portas do veículo esclarece o enigma de suas gaiolas desocupadas: “Apreensão de cães ferozes”. Faz sentido, por aqui nunca vimos nenhum cachorro.

O menino senta na escadaria do aquário, diante da carrocinha. Deposita a sacola num degrau, entre suas pernas. Ao abri-la, sente um aroma escapar lá de dentro, e isso o faz recuar, como se tivesse violado um sarcófago. Tira da sacola um objeto que não reconheço de cara. Olho melhor. A forma irregular, a cor parda, pálida. É um osso, bastante descarnado. Talvez a sobra de um grande filé.

A velha carrocinha o fascina. Está sempre ali, estacionada, a caminhonete branca da Guarda Municipal

Indeciso, o menino investiga o fundo da sacola, onde decerto há mais comida. Remexe o seu conteúdo, aspira novos perfumes, mas seu olfato os reprova. Olha para a carrocinha, para os cães ferozes que não estão entre nós, ou estão, e nesse caso são absolutamente inapreensíveis. Depois estuda os gaviões no viveiro ali perto, um casal sereno em seu ninho, chocando o milésimo ovo de seu cativeiro. Não, naquelas aves não há ferocidade alguma. Mesmo assim as engaiolaram.

A poucos metros do menino, três sabiás, livres, avançam pelo chão de areia e pedra. Formam um bando de pequenos batedores. O menino os observa com algum enfado e, de repente, atira para eles o osso que já desistiu de roer. Habituados à ceva, os passarinhos não se assustam, embora recebam o presente com perplexidade.

Um deles, num passinho de dinossauro neurótico, marcha até o osso. Meio sem jeito, bica a refeição e, considerando-a adequada, repete o gesto. Os outros sabiás o imitam, confiantes, e o menino sorri. Na sacola há mais ossos, e ele os atira à passarada, aos punhados, como quem joga milho às galinhas, até que o farnel se esvazie.

Cautelosos, os sabiás levantam voo, se ausentam temporariamente, e os ossos ficam lá, largados no pó, imperecíveis, à espera da passagem dos milênios. Na falta do que fazer, fico pensando num animal que pudesse renascer a partir daquele esqueleto incompleto, semeado pelo menino no chão do Passeio.

Ele, é claro, não pensa nisso. Cai fora, precisa conseguir mais fermento. Cobertor nos ombros, passa pela carrocinha e, correndo os dedos pelas grades, improvisa um som de matraca. Os sabiás, aos poucos, se reagrupam no solo. Passeiam entre os restos de churrasco como se visitassem uma instalação. Uma galeria de arte, onde tudo lhes parece bom e inapreensível.

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