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Nada contra os urubus, pelo contrário. Morador do centro de Curitiba, sou vizinho e admirador de vários deles, a quem já identifico individualmente e sem esforço, avaliando a placidez de suas fisionomias e a sábia naturalidade com que esperam pelo fim das coisas. Aprecio, sim, essa calma exemplar que os distingue de tantos outros pássaros urbanos. E aprovo, sobretudo, sua recusa à obsessão contemporânea pela proatividade, seu desapego às medidas antecipatórias, às vaidades da predação, ao histrionismo dos voos rasantes. Eles preferem aguardar uma chance, só isso, penteados pelo vento que varre os edifícios, naquela pose corcunda e sempre lamentável, indecisos entre a pedra das gárgulas e a humildade das galinhas.

Faz tempo que convivo com eles, e garanto: até combinamos. Não costumo receber visitas em casa, menos por casmurrice que por pudor, mas a essas aves abri uma exceção amistosa. Dia sim, dia não, admito dois ou três urubus em meu modesto terraço na Ébano Pereira. Nunca me arrependi, as tardes são ótimas e, daqui do alto, tudo o que fazemos, quietos, é olhar a paisagem.

Não, meus convidados não parecem gostar do que veem, mas jamais ouvi, de sua parte, qualquer crítica ao nosso sistema de vida. Jamais um pio, de desgosto ou deslumbre, sobre a praga dos espigões espelhados de azul, ou o embaçamento do horizonte e da Serra do Mar, ou o lixo que se acumula nos miolos de quadra, os perigos do tráfego no céu e a burrice do trânsito terrestre, encoberto pela frágil floração dos jacarandás e das corticeiras. Nada disso os anima ou aborrece, nada os toca em sua dignidade de seres impenetráveis, nada – a não ser nossas manifestações populares, cada vez mais rotineiras e ruidosas.

Antes, os urubus adoravam as aglomerações humanas. Eram acometidos por uma gostosa ilusão de miséria, de alegre catástrofe, de acidente irrefreável. Diante das multidões, era até comum eu flagrar, no olhar dos pássaros em meu terraço, um fulgor feliz, de esperança. Mas essa expectativa de banquete não durou: as aves se acostumaram ao que julgam ser a boa sorte dos homens – e nos deixaram pra lá. Afinal, são bichos fortes e finos; ao contrário de nós, sabem administrar sua impotência.

E é por isso que, hoje, ao acompanharem daqui de cima o Natal no Palácio Avenida, ou o carnaval no Largo da Ordem, ou a profusão das marchas na Boca Maldita, os urubus o fazem com certo desdém de raposa de Esopo. É a única arrogância a que se rendem, esta empáfia de fábula. Decerto acreditam que, de nossas festas e desejos mais fundamentais, não sairá recompensa alguma, nem para nós, nem para eles. Ah, escutei um de meus convidados suspirar, a humanidade nunca esteve tão inalcançável.

De fato, só agora percebo: gosto dos urubus justamente por seus defeitos, fraquezas e contradições. Dia desses, por exemplo, eu os vi penetrando, desajeitados, no vão estreito e escuro entre a caixa d’água e a cobertura do prédio colado ao meu. O lugar estava cheio de ninhos de pombos, que se agitavam inutilmente em torno dos invasores, na tentativa de afugentá-los e salvar seus filhotes. Aflito, decidi intervir. Abri a vidraça com escândalo e me preparei para gritar. A dez metros do conflito, bastaria um berro meu para que os urubus voassem e os ninhos fossem poupados.

Só que minha voz não saiu. Algo me forçou a calar, fechar novamente a janela e descer a cortina. Nada contra os pombos, pelo contrário. Mas creio que a convivência me fez compreender os urubus, suas fomes e seus métodos. A compreensão, vocês sabem, pode ser o inferno. E o éden dos carniceiros.

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