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Os ônibus de Curitiba ainda não precisavam de tantas articulações. Eu era criança e ela, pouco mais velha, já posava de moça. Estudava inglês na mesma escola que eu, e pegávamos o mesmo expresso, na Sete de Setembro. Eu descia na igreja do Capão Raso e ela, na do Portão. Seus cabelos eram vermelhos e, para mim, aquilo já bastava, embora também me abalassem os seus braços, sempre bronzeados, não importava a época do ano. Era surfista, nadadora, ginasta, mentirosa. Nunca me viu, até o dia em que corri guardar um lugar para ela no fundo da condução. Em troca, levou minha pasta no colo. Acomodou-a debaixo da bolsa e, sobre nosso material escolar, deitou os longos braços de esportista.

Ela falava muito, como se eu não fosse um menino, e não esperava respostas, somente reações. Eu reagia em silêncio. Já nem lembro direito de seus assuntos, sua voz, a cor de seus olhos, mas não esqueço seu nome – que, claro, não publicarei aqui. Não por elegância, admito, mas por respeito. É aconselhável respeitar o tempo que passa.

O hábito era voltarmos juntos para casa. Quem saísse primeiro esperava o outro na escada da escola. Pegávamos a Buenos Aires e seguíamos até a canaleta, ela sempre me narrando alguma banalidade romântica ou aventuresca. Já disse que não recordo de detalhe algum, podia ser a história de uma onda invencível, a luz de sua praia favorita no inverno, o gosto da água na piscina do clube, seu sucesso numa competição de ginástica no interior. Possuía a volúpia das palavras, desperdiçava todas, e nem queria saber das minhas, desprezava a lógica da conversação. Eu não a compreendia, mas me sentia favorecido, à espera de uma vantagem pessoal, ainda não sabia de que tipo.

Só o descobri numa tarde comum de garoa, quando fomos atravessar a Visconde de Guarapuava. Na esquina, ao perceber o imenso fluxo de carros que já cruzava a Desembargador Motta, parei. Ela não. Absorta pela própria fala, continuou a caminhar e, desatenta, invadiu o asfalto. Nem se deu conta da minha ausência, apenas manteve aquela sua rota costumeira de destemor. Encarava um ouvinte invisível que, evidentemente, não era mais eu.

Compacto, o bloco de automóveis se aproximava depressa, e logo soaram as buzinas. Larguei a pasta e o guarda-chuva, saltei para o meio da avenida e, agarrando o braço da moça, a puxei com força para trás, sem qualquer cuidado. O solavanco foi violento, quase uma agressão, mas eficiente. Alguns veículos tentaram frear, a pista úmida demais, e por pouco não a atropelaram. Foi questão de meio metro.

De volta à calçada, ela não acusou qualquer emoção. Se recompôs como pôde, ajeitou os cabelos, ergueu o cós da calça, conferiu a marca da calcinha e retomou o discurso, do ponto em que fora interrompida. Nem me agradeceu. Seu coração permanecia sereno, tão calmo quanto antes, tive até vontade de tocar seu peito, seu pulso, sua jugular, e checar seus batimentos. Despreocupada, ela se limitava a falar. E olhava para mim – ou para alguém que via em mim – como se, ao nosso redor, não houvesse mais paisagem, cidade, chuva, trânsito, perigo.

A única mudança visível em sua figura era o rastro avermelhado dos meus dedos em seu braço. Durante uma semana elas ficaram ali, cinco manchas escuras, primeiro negras, e então roxas, verdes, amarelas. Isso faz 30 anos. Desde aquele dia venho carregando esta estranha impressão de ser um anjo desavisado.

E foi esse o favor que ela, hoje tão irreal, fez à minha infância. Depois disso, vocês sabem, nossos ônibus cresceram, e nos perdemos por aí.

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