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Estive em Guaratuba por uns dias, no começo do inverno, e a cidade deserta, à noite, me fez lembrar do quanto um apartamento vazio pode ser escandaloso. Lá fora, nada se manifestava. Não havia luz no céu ou nos prédios vizinhos, e até a chuva estava quieta. Nenhum carro na rua, nenhum motor ou rádio ligado. Nem os cães se animavam a latir contra o frio. Dentro de casa, sem tevê, sem música e sem companhia, a única conversa era entre as portas e janelas, e tudo estalava, mandando um beijo aos meus ossos.

Mesmo assim, foi fácil dormir. Quis fazer inveja à madeira, ao vidro e ao alumínio, e me tornei uma rocha. Se ronquei, não houve testemunhas, e a vida deixou de existir até o início da manhã, quando fui despertado pelo grito dos gaviões que tomam conta dos nossos edifícios. A cidade ressuscitava. Bandos de operários, barulhentos, iam chegando às muitas obras que se espalham pela região, e o canto deles, pássaros e homens, substituía o sol.

Fui à sacada conferir os estragos. No inverno, o balneário aproveita para se verticalizar escondido. Fora da temporada é que crescem os coqueiros plantados à beira-mar, e novos prédios se erguem, retalhando ainda mais o horizonte. Infelizmente, as construções humanas levam vantagem, e meu oceano, hoje, é uma linha picotada. Eu mesmo, lá do alto, sei que obstruo a vista de alguém, que obstrui a de outro, e assim, sucessivamente, vamos nos transformando em muros, obstáculos ao prazer alheio.

No inverno, o balneário aproveita para se verticalizar escondido

Tomei café e desci passear na praia. O vento vinha misturado à garoa, e a areia molhada, ainda bem, não conseguia decolar. O tempo pedia um cachecol, e caminhei, enrolado, por toda a orla. Meses atrás, centenas de milhares de pessoas se espremiam naquele lugar, e deitávamos ali como alegres visagens, sem ao menos perceber que estávamos nus. Agora, a presença de uma simples senhora ao longe, vestida de cinza, já me parecia invasiva. Nenhum veneno é menos puro que a solidão, qualquer cisco a contamina.

Cruzei com a intrusa e me vi obrigado a cumprimentá-la. Cada vez menos sozinho, toquei adiante, pela calçada irregular, de pedras que afundavam. Da areia me observava um carcará, e dois sanhaços me acompanhavam, saltando de coqueiro em coqueiro. Eu me sentia um grande peixe, um lento predador escoltado por pequenos parasitas, belos interesseiros. Era até lisonjeador.

No fim do calçadão é que encontrei as corujas. De um buraco no chão, um macho vigiava o exterior; numa palmeira próxima, a fêmea girava a cabeça sobre o mundo. E, de repente, de um túnel na restinga saíram três filhotes, em fila indiana, como numa procissão de boas-vindas. A família aceitou minha aproximação e, embevecido, me pus de cócoras, chegando mais perto do ninho. Seis olhos amarelos piscavam para mim, um de cada vez, querendo me comunicar algum segredo, uma mensagem em código.

Pena que não tive tempo de decifrá-la. O carcará, se valendo da nossa distração, atacou os filhotes, num rasante. Por sorte, eles conseguiram fugir, pulando de volta à escuridão da toca. Seus pais perseguiram o invasor aos berros, e sumiram todos, numa luta aérea. Antes de cair fora, pensei: fui usado. Apesar de minhas boas intenções, fui usado.

Na manhã seguinte, da sacada, avistei o carcará, talvez o mesmo, empoleirado num condensador de ar-condicionado. Era como se me esperasse para contar uma novidade. Preocupado, corri ao ninho das corujas-buraqueiras e só encontrei dois dos filhotes, ainda receptivos. Fiquei torcendo para que o terceiro ainda estivesse lá dentro, desconfiado, e que tivesse aprendido, comigo, qualquer coisa de proveitoso sobre a inutilidade das ternuras.

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