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Um vendedor avança devagar pela Cândido Lopes. Vem mancando. Nas costas, bastante amassada, traz uma imensa bandeira do Brasil. Como não há vento, ela jaz desfalecida. Há mais bandeiras com ele, e de vários tamanhos, todas verde-amarelas, enroladas debaixo do seu braço. Nenhuma nos anima a desfraldá-la, é pena. No ombro do homem, a sacola cheia de cornetas também é um peso morto. Ele até sopra uma delas, azul, sem muita determinação, e o som sai lascado, não parece celebrar coisa alguma. É como se apenas anunciasse a sua chegada, a passagem sobre a Terra de uma criatura curiosa, vivendo entre o deboche e o desmaio.

Mas o que há de errado com ele? Não sei, está cansado, será que vendeu demais, passou o dia exposto ao frio e à chuva, esmoreceu ao fim de uma longa jornada lucrativa? Mais provável que não, tivesse vendido estaria menos carregado, houvesse lucrado seria um rapaz sério, ereto, criativo, um inventor de rimas e promoções. Não, este vendedor está aí há semanas, calado, à espera da felicidade e de fregueses, apanhando garoas e resfriados em série, e qual o problema? Cada moeda que ele ganha, e são tão poucas, é convertida em muitas doses de cachaça e ideais de liberdade, tudo em nome da vida honesta, porém informal. Afinal, quem disse que, para ser patriota, é preciso recolher impostos?

O vendedor passa em frente à Biblioteca Pública, mas não a vê. Acho que nem sabe por onde anda, os olhos já meio mortos, meio fechando, penso que querem morrer antes do corpo, decidiram por conta. O andar arrastado, a coluna curva, a boca torta e úmida. A carcaça ainda resiste, sim, mas os olhos estão morrendo.

Uma mulher se aproxima dele com alguma relutância, puxa pela mão um menino empolgado, e pergunta, primeiro, qual o preço de algum produto. Depois, diante do silêncio do homem, se preocupa: o senhor está bem? Nenhuma palavra. A venda, que era certa, não sai, o vendedor não diz nada, apenas assopra a corneta azul na cara dos clientes, uma, duas, três vezes, um sopro apertado, o som em forma de facas. Mãe e filho se assustam, fogem ao perceber que deve haver gato naquela tuba, um camundongo na vuvuzela. O sujeito, definitivamente, não está bem.

Agora ele ri, eu sei, mas não está bem. Faz cara de choro enquanto ri, mas, olhem direito, não é choro não, é mais o reflexo de uma azia violenta, uma dor mascarada. Mesmo assim, com o rosto convulso, o vendedor grita: Brasil! E grita de novo, e de novo, Brasil, Brasil, apenas tomando o cuidado de intercalar, entre cada Brasil, um alegre palavrão. Depois rodopia como um cangaceiro do cinema novo e, então, vocês já sabem o que acontece, é tão fácil prever.

Ele cai. Cai alvejado por um projétil qualquer, invisível e inaudível, uma bala muda e meio à toa, disparada não se sabe por quem, não sei de que ponto da nossa história. O vendedor cai diante da Biblioteca Pública, abatido, sim, mas não liquidado, cai enrolando-se em dezenas de bandeiras brasileiras de plástico barato, e as vuvuzelas rolam ridiculamente sobre as lajes da calçada, entre as floreiras sem flor.

Mas a vítima reage rápido. Logo acorda de seu torpor e se levanta. Olha ao redor, investigando os prédios à sua volta, como se procurasse nas janelas um franco-atirador. Pelo contrário: em todos os edifícios, tudo o que vê são bandeiras brasileiras, iguais às dele. Aliviado, o vendedor enfim me localiza aqui, sentado na escada da Biblioteca. Sorri para mim, a mão no peito ferido, e esclarece o caso:

"Foi fogo amigo."

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